29 abril 2025

CUATRECASAS - Uma Máfia Legal (19)

 (Continuação daqui)



19. Os poderes de sedução


No início do Verão de 2019 eu estava ainda a convalescer de dois choque traumáticos que tinha sofrido em Março. O primeiro tinha sido uma operação de coração aberto, um by pass coronário, depois de ter sido acometido por um enfarte do miocárdio. O segundo, duas semanas depois, foi o acórdão do Tribunal da Relação do Porto que, em lugar de me absolver, agravou a condenação de primeira instância, embora com um vibrante voto de vencida da desembargadora Paula Guerreiro.

A minha indignação era total. O meu era um caso-de-escola que qualquer estudante do primeiro ano de Direito, depois de estudar a jurisprudência do TEDH, resolveria sem dificuldade. Acresce que o TRP tinha sido um dos primeiros tribunais superiores portugueses a adotar a jurisprudência do TEDH que dava prevalência ao direito à liberdade de expressão sobre o direito á honra. Alguns dos seus acórdãos nesta matéria eram icónicos.

Num acórdão de 2007, relativo a um caso que opunha o crítico de arte Augusto M. Seabra ao então presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio, os três juízes da Relação do Porto arrasaram a decisão condenatória de primeira instância escrevendo: "É essencial (...) que se retorne ao espírito de Voltaire: discordo do que dizes mas defenderei até á morte o teu direito a dizê-lo". Noutro caso, em  2013, os desembargadores Joaquim Gomes e Paula Guerreiro terminam o seu acórdão acórdão sobre o mesmo tema - direito à liberdade de expressão vs. direito à honra -, citando Jorge de Sena: "Quem te amar, ó liberdade, tem de amar com paciência".

Na altura, o Miguel Sousa Tavares tinha escrito um excelente artigo no Expresso em que, sob o título "Os intocáveis", atacava ferozmente a impunidade dos magistrados do Ministério Público, ao mesmo tempo que continuava na comunicação social um processo que se iniciara em 2017 e que decorreu em paralelo com o meu, tendo como figura central um ribatejano, de nome Arlindo Marques, guarda-prisional de profissão, e que ficaria nacionalmente conhecido como "O Guardião do Tejo".

Foi este conjunto de circunstâncias que, a 2 de Julho de 2019, me levou a publicar no Portugal Contemporâneo um post com o título "Que amor é este?", que ainda hoje permanece um dos mais lidos do blogue, e que reproduzo na íntegra. Nele, eu interrogo-me sobre os poderes de sedução que teria a Cuatrecasas sobre o Ministério Público para que este a deixasse sempre feliz.

Que amor é este?

O Miguel Sousa Tavares exibiu no seu último artigo do Expresso uma faceta que lhe é reconhecida, que é a sua profunda indignação com os poderes que o Ministério Público adquiriu em Portugal nos últimos anos, e os abusos que comete por virtude desses poderes extraordinários.

De meros advogados do Estado, os procuradores do Ministério Público passaram a ter poderes de polícia criminal e também poderes que são próprios dos juízes. Em cima disso, não prestam contas a ninguém.

Um destes últimos poderes resulta do monopólio que possuem da acusação criminal no país. Se me roubarem a carteira, o assunto só vai a tribunal e o carteirista só será julgado se o Ministério Público deixar, e mesmo aí quem acusa é o MP e não eu. Se, pelo contrário, o Ministério Público considerar que não há indícios suficientes de que o carteirista me roubou a carteira, o carteirista não vai a tribunal e não há crime nenhum.

Por outras palavras, o Ministério Público é uma espécie de porteiro sentado à entrada do sistema de justiça criminal, de tal maneira que só entra no sistema de justiça criminal aquilo que o Ministério Público deixar. Ora, esta é uma função - a de julgar o que é crime e o que não é crime - que deveria competir a juízes e não a meros advogados do Estado. (Excluo obviamente do meu conceito de juiz a figura do juiz-de-instrução que, trabalhando em conjunto com a acusação protagonizada pelo Ministério Público, perde todas as características de imparcialidade necessárias a um juiz. É um acusador).

Ora este poder de deixar entrar certos crimes no sistema de justiça criminal mas barrar a entrada a outros é um poder extraordinário que corrompe a credibilidade da justiça e permite a sua manipulação, e que eu vou ilustrar usando dois exemplos.

O primeiro exemplo, é o meu case-study. A Cuatrecasas e o seu director acusaram-me de dois crimes - difamação agravada e ofensa a pessoa colectiva. À luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a que Portugal está vinculado, nada disto é crime. Mas o Ministério Público considerou que era crime e o caso foi para julgamento.

Portanto, neste caso não há crime mas o MP considera que há crime.

O segundo exemplo vem de um outro comentário do Miguel Sousa Tavares relativo a um assunto que tem sido tratado neste blogue. Perante a indignação do Arlindo Marques, o "Guardião do Tejo", e outros cidadãos de que uma empresa de celulose andava a poluir o Tejo, o Ministério do Ambiente mandou fazer análises às águas, e os resultados foram mandados para o Ministério Público. Naturalmente, se os resultados das análises indicassem poluição, o Ministério Público teria de abrir um processo crime contra a empresa de celulose.

E o que fez o Ministério Público?

Proibiu a divulgação dos resultados das análises alegando que estavam em segredo de justiça. Consequência: não há procedimento criminal contra a empresa de celulose.

Portanto, neste caso, há crime (se não houvesse, os resultados das análises teriam sido divulgados), mas o MP considera que não há crime.

Quem comentou este caso, incluindo o MST, falou na proximidade entre o Ministério Público e um grupo económico que possui um jornal de grande divulgação. Mas não se apercebeu que o elemento mais importante desta história estava escondido: a Cuatrecasas é a advogada da empresa de celulose. 

Conclusão: mais uma vez o Ministério Público decidiu a favor da Cuatrecasas e, muito provavelmente, como no caso anterior, sob instigação da Cuatrecasas.

Reunindo os dois exemplos,  a moral da história é muito simples. Num caso, a Cuatrecasas queixa-se, não há crime, mas o MP decide que há crime, deixando a Cuatrecasas (e o seu director) a sorrir. No outro, há crime, a Cuatrecasas defende o seu cliente, e o MP, pela sua inacção, decide que não há crime, deixando mais uma vez a Cuatrecasas (e o seu cliente) a sorrir.

Que amor é este que existe entre o Ministério Público e a Cuatrecasas em que - pelo menos nestes dois exemplos -, as decisões do Ministério Público, por mais aberrantes que sejam, deixam sempre a Cuatrecasas feliz?

(Continua acolá)

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