(Continuação daqui)
"Todos, todos, todos!".
Ninguém melhor do que um jesuíta, ainda por cima Papa, para fazer este apelo na capital de um país que, provavelmente, mais do que qualquer outro, procurou dar-lhe realidade ao longo da sua história (cf. aqui).
É um apelo a que não haja excepções, a que todos, mas mesmo todos sem excepção, sejam admitidos no seio da casa comum, a Igreja Católica. Infelizmente, é esta ambição totalmente inclusiva de tornar a Igreja Católica verdadeiramente universal, onde todos tenham lugar, sem uma única excepção, que fez do catolicismo uma cultura de excepções - o chamado excepcionalismo católico, que está na base do casuísmo.
Como chamar um soba africano e a sua gente ao catolicismo, que proíbe o tráfico de pessoas, senão permitindo que, em certas circunstâncias, as pessoas sejam compradas e vendidas? Os portugueses aproveitaram esta excepção como nenhum outro povo, iniciando um lucrativo tráfico de escravos que, ao mesmo tempo, enfraqueceu a sua ética de trabalho a um ponto que perdura até hoje. ("Trabalhar é bom para o preto", dizia-se em Portugal com uma certa abertura até há poucas décadas atrás).
Para que os criminosos não sejam excluídos é necessário permitir que, pelo menos em certas condições, os vigaristas, os ladrões, os chico-espertos, os burlões e até os homicidas sejam tolerados. Uma cultura que ambiciona não excepcionar ninguém, acaba a abrir excepções por todos os lados para realizar o seu próprio ideal. Esta é a tragédia do catolicismo post Concílio de Trento - a corrupção da moral e da justiça nos países sujeitos à sua influência.
Ninguém melhor para exprimir esta tragédia em pleno século XXI do que um Papa jesuíta.
Numa tese muito semelhante à de Antero de Quental e àquela que este ano ganhou o prémio Nobel da Economia, no início dos anos 80 o economista Lawrence E. Harrison (cf. aqui), propôs-se explicar a pobreza dos países latinos da América em contraste com a riqueza dos seus vizinhos do norte (EUA e Canadá). Em breve chegou à conclusão da importância decisiva da cultura católica para explicar a pobreza dos primeiros e, dentro dela, da flexibilidade do sistema ético do catolicismo. A ética do trabalho, o cumprimento das promessas e dos contratos, o respeito pela palavra dada, a eficácia da justiça, nada disto era nos países católicos como nos seus vizinhos protestantes do norte.
Mais recentemente quando, há uns anos, eu andava a visitar as empresas farmacêuticas para angariar fundos para a construção, por via mecenática, da ala pediátrica do Hospital de S. João, a certa altura visitei uma multinacional em Lisboa que tinha como director um gestor australiano, há três anos em Portugal. Como eu próprio tinha vivido num país muito parecido com a Austrália em termos culturais - o Canadá - no fim ficámos a falar das diferenças de cultura entre estes países e Portugal.
Comecei por lhe perguntar o que é que achava de melhor em Portugal, e ele respondeu "As pessoas, que são muito simpáticas". Perguntei-lhe de seguida o que achava de pior e ele respondeu sem hesitação: "A justiça. Qualquer crook [safado, vigarista, chico-espero, trapaceiro] consegue iludir a justiça".
É este o preço do casuísmo. É este o preço do Todos, Todos, Todos!, dito por um Papa jesuíta que vem de um país muito católico, pobre e que há muito não se consegue governar a si próprio. É caso para perguntar: Se o Papa não conseguiu mudar o seu próprio país, será que vai conseguir mudar o mundo?
É altura de voltar ao caso Almeida Arroja v. Portugal para ilustrar o casuísmo, e a correspondente corrupção da justiça, envolvido nas decisões dos tribunais portugueses.
Se existia uma jurisprudência sobre o caso tão clara que até eu, que nem sequer sou jurista, podia afirmar com toda a certeza que não existia crime nenhum no meu comentário televisivo - e que o TEDH veio confirmar com uma decisão unânime de sete juízes -, que argumentos foram os juízes nacionais inventar, quer na primeira instância quer na segunda, para me condenar?
Tiveram de inventar excepções às regras que constituem a jurisprudência do TEDH nestes casos em que está em confronto o direito à liberdade de expressão e o direito à honra.
Uma dessas excepções hoje faz-me rir, a outra ainda hoje me deixa furioso.
(Continua acolá)
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