20 outubro 2024

A Decisão do TEDH (380)

 (Continuação daqui)





380. O casuísmo


No seu célebre ensaio "As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares", citado em baixo (cf. aqui), Antero de Quental refere-se por mais do que uma vez ao casuísmo, e identifica os casuístas com os jesuítas. Na opinião de Antero, o casuísmo foi a principal causa da corrupção da moral católica e da decadência dos povos peninsulares a seguir ao Concílio de Trento.

Neste post e nos seguintes, eu pretendo discutir o tema do casuísmo e argumentar que, mais do que a corrupção da moral católica, os efeitos que o casuísmo produziu a corromper a justiça dos países sujeitos à influência católica, como Portugal, foram ainda mais devastadores. Pelo caminho, pretendo fazer uma  qualificação ao argumento de Antero, mostrar que o casuísmo continua hoje presente na cultura judicial portuguesa, e utilizar o caso  Almeida Arroja v. Portugal como um exemplo paradigmático.

O casuísmo define-se na frase "Cada caso é um caso", a qual é muito popular em vários domínios da cultura portuguesa. Esta frase imediatamente inspira a exclusão de regras gerais, das generalizações e do pensamento abstracto, para privilegiar cada caso particular e o pensamento concreto.  Uma cultura casuística é avessa à ciência, que vive de abstrações e generalizações, e daí a pobreza dos países católicos na produção científica.

Exemplo: a Maria sofre de covid. Mas para quê investir em encontrar uma vacina para o covid da Maria se o covid da Maria é diferente de todos os outros covid's, e essa vacina só serviria para a Maria e para mais ninguém? É esta atitude cultural que paralisou a ciência em todos os países católicos, e explica por que é que as vacinas para o covid vieram de países tocados pela influência protestante (EUA e Inglaterra), uma cultura que considera que existe mais igualdade do que diferença entre as pessoas (aquilo que é válido para a Maria é, em geral, válido para as outras pessoas).

No campo das humanidades e das ciências sociais, o pensamento casuístico consiste em levar ao extremo o princípio do personalismo católico, que sustenta que cada ser humano é único e irrepetível, para tornar cada ser humano uma excepção - aquilo que se aplica a um não se aplica aos outros. Não surpreende que as ciências sociais, de que a Economia é, ás vezes, considerada a rainha, tenham todas nascido nos países protestantes (A Economia nasceu na muito protestante Escócia, pela mão do presbiteriano Adam Smith).

A ligação quase estrita do casuísmo aos jesuítas feita por Antero é um pouco abusiva porque toda a cultura católica navega ainda hoje no casuísmo, e não apenas os jesuítas.  A associação aos jesuítas deve-se a duas razões, uma delas publicitária e devida a Pascal. Nas suas célebres Lettres Provinciales, Pascal desferiu uma contundente crítica ao casuísmo na pessoa dos jesuítas.

A outra razão é que, depois da Igreja ter perdido milhões de fiéis no norte da Europa a seguir à Reforma Protestante, foram os jesuítas os grandes missionários que permitiram à Igreja compensar as perdas e angariar novos fieis em outra partes do mundo, como a América Latina, a Ásia e a África. Neste processo o casuísmo foi, por assim dizer, uma estratégia de marketing.

Como convencer um soba africano  a aderir ao catolicismo que proibia  o tráfico de seres humanos, senão admitindo que, sob certas condições, as pessoas se podem comprar e vender? Como levar uma tribo de canibais da América Latina a aderir ao catolicismo senão admitindo, ainda que excepcionalmente, que sob certas condições, as pessoas se podem comer umas às outras? 

O casuísmo é precisamente isto, a procura de "razões", de pretextos, de  desculpas para excepcionar a regra geral. "É proibido roubar", mas se fôr para comer já se pode roubar; se o proprietário fôr rico, e tiver três casas, pode-se-lhe roubar a segunda e a terceira porque ele não precisa delas; também se pode roubar as empresas aos seus donos porque os capitalistas são uns criminosos exploradores; quanto à terra, ela pertence a quem a trabalha. 

O PREC, a seguir ao 25 de Abril, foi um autêntico festival de casuísmo por parte dos amigos do alheio em relação ao princípio da inviolabilidade da propriedade privada.   

Existe uma racionalidade, uma Razão,  no princípio moral "É proibido roubar" porque nenhuma comunidade humana pode viver, muito menos prosperar, se esse  princípio não fôr adoptado como regra geral de comportamento humano. Mas se um número suficiente de "razões" (i.e., desculpas ou pretextos) fôr encontrado para o derrogar, o princípio torna-se frouxo, as "razões" prevalecem sobre a Razão, as excepções prevalecem sobre a regra, e daí o laxismo moral da cultura católica e a irracionalidade que lhe são atribuídas.

A cultura católica, ao contrário da cultura protestante, precisa de moralistas profissionais, que são os padres, que preguem constantemente a moralidade porque ela própria contém os germes que estão constantemente a trabalhar para destruir a moralidade. Esses germes são os pretextos, as desculpas, as "razões" para fugir à regra geral, para encontrar excepções - numa palavra, o casuísmo.

(Continua acolá)

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