(Continuação daqui)
362. O caminho
A Bíblia nunca menciona a liberdade de expressão, e o Catecismo da Igreja Católica muito menos.
Para que serve, então, a liberdade de expressão?
-Para tirar obstáculos do caminho.
O primeiro obstáculo em razão do qual a liberdade de expressão adquiriu um carácter quase sagrado foi a Igreja Católica.
Na teologia católica, um homem chega a Deus em comunidade, em comunhão, e sob a direcção da Igreja. Nesta cultura, quando um homem faz menção de chegar a Deus sozinho, a Igreja corta-lhe o caminho com a mensagem: "Tu não vais ser capaz de lá chegar sozinho, vais-te perder pelo caminho. Tens de vir em grupo e sob a nossa direcção".
Foi esta ideia que a revolução protestante dos século XVI e seguintes veio pôr em causa. Num mundo ocidental que era essencialmente católico, o protestantismo veio dizer que cada homem poderia chegar individualmente a Deus, e que a Igreja saísse da frente, para que cada um pudesse percorrer livremente esse caminho.
A ofensa verbal é a única arma que as pessoas decentes possuem contra o mal, ou contra quem se atravessa no seu caminho, porque todas as outras (os punhos, as facas, as pistolas, as metralhadoras ou as bombas) lhes estão vedadas.
Não foram poucas as ofensas feitas à Igreja pelos crentes protestantes para que saísse do caminho, das quais "Puta da Babilónia" foi uma das mais suaves. O próprio Cristo ofendeu os fariseus e os doutores das Leis quando estes, através das suas interpretações rebuscadas das Escrituras e do culto das aparências, se meteram no caminho entre o homem e Deus.
13 “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês fecham o Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo. (cf. aqui)
A diferença entre a teologia católica e a teologia protestante veio pôr em evidência um aspecto que o meu colega Joaquim salienta no seu post em baixo, que é o contraste entre a cultura comunitária do catolicismo e a cultura individualista do protestantismo.
Na cultura comunitária do catolicismo, as instituições comunitárias - primeiro a Igreja, agora o Estado -, estão sempre metidas no caminho do indivíduo, tolhendo-lhe a iniciativa, barrando-lhe o caminho, impedindo-o de prosseguir livremente os fins que ele próprio escolheu na vida. Pelo contrário, a cultura individualista do protestantismo não aceita quem se meta no caminho do indivíduo. A liberdade de expressão, que comporta a ofensa, permanece até hoje a única arma pacífica contra quem lhe barra o caminho: "Não sais a bem, sais a mal".
No acórdão Almeida Arroja v. Portugal a conclusão a que o TEDH chega para condenar o Estado português é a de que o Estado não tinha nada que se meter no assunto - um acórdão muito protestante a defender a liberdade de expressão contra um Estado de cultura muito católica.
(Continua acolá)
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