07 agosto 2024

A DIABA DE NEGRO

 

Estava sentado numa esplanada da rua de Cedofeita, a saborear um delicioso gelado de coco e chocolate branco, quando vi o Diabo. Apareceu na figura de uma esbelta mulher, inteiramente vestida de negro, com uma frondosa cabeleira preta pintada de azul-celeste no topo.

No seu metro e oitenta, pensei que a menina tivesse roçado o cocuruto do crânio no azul da troposfera, arrastando uma breve promessa de futuro para um presente deprimido pela negritude da indumentária.

 

Levantei-me de um salto e pedi-lhe  que me deixasse tirar-lhe uma fotografia para a minha série NEGRA — uma coleção de fotos com memórias da deprimente época em que vivemos.

 

— Posso tirar-te uma fotografia? – perguntei-lhe.

 

— O que é que eu lucro com isso? – respondeu-me de imediato.

 

— Um gelado à tua escolha...

 

Respondeu com uma gargalhada irónica enquanto fazia um gesto de enfado.

 

— Esquece – disse num tom de voz enfastiado, enquanto se esgueirava da minha vista.

 

Ao afastar-se tirei-lhe de novo a medida; caminhava de forma desengonçada arrastando um saco ao ombro que parecia de sarapilheira. Vi-a parar para acender um cigarro e, logo de seguida, sacudir as havaianas da poeira do caminho.

 

Voltei ao gelado de coco e chocolate, enquanto continuava a observar a quantidade de “negreiras” que passavam. ‹‹A moda da roupa preta transcende as gerações e as classes sociais›› — pensei.

 

— Ouve lá otário, ainda me pagas um gelado?

 

O Diabo de Negro tinha regressado. Não é necessário um doutoramento em estudos evangélicos para perceber que o Diabo nunca desiste. Desperta-te a atenção, evade-se, regressa e lança de novo a sua rede.

 

No Médio Oriente o Demiurgo é conhecido por Satã e os islamistas chamam “Grande Satã” aos EUA porque as artes negras do Demónio seduzem os incautos e arrastam-nos para a condenação eterna do Inferno.

 

Eu também me sentia atraído por esta mulher, não pelo seu aspecto mas pelo mistério. A Diaba quer dar nas vistas, mas não se distingue das tribos de renegados da espécie humana.

 

— Claro que sim — vai escolher e senta aqui comigo.

 

Voltou com um cone de gelado impetuoso, volumoso e furta-cores.

 

— Estou esfomeada, a ganza deu-me uma larica que não estás a ver – disse a Diaba com um sorriso.

 

‹‹Estou a ver mas é um monte de tatuagens com signos do zodíaco e piercings nas orelhas, no nariz e na língua›› – pensei.

 

— Qual é o teu signo? – perguntei-lhe.

 

— Sou Virgem e tu?

 

— Peixes...

 

— És um romântico – comentou, enquanto revirava os olhos a consultar algum mapa astral que teria interiorizado.

 

— Para que é que queres as fotografias? – perguntou-me.

 

— Estou fascinado com a roupa negra e quero perceber a origem deste fetiche, porque é que tanta gente anda de preto?

 

— Ninguém anda a pensar nessas merdas, tu é que és tarado...

 

— Talvez...

 

O gelado estava a acabar, a Diaba lambia-o com avidez enquanto me fixava nos olhos e expunha, com orgulho, as potencialidades do piercing prateado da língua.

 

— Se o preto não faz o teu gosto eu posso tirar o vestido para as tuas fotos, mas vai-te sair mais caro.

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