05 abril 2024

A Decisão do TEDH (71)

 (Continuação daqui)



71. Conselho Superior da Magistratura

Recebi hoje o seguinte e-mail do CSM:

 

Informação relativa ao procedimento 2021/GAVPM/4148.

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

N/ Refª                                                                         
Procº   2021/GAVPM/4148

V/ Refª   -  Email de 26-03-2024
                      
ASSUNTO:    Comunicação de despacho  ao  exponente

Exmo. Senhor
Prof. Dr. Pedro Arroja

Na sequência do email acima referenciado, tenho a honra de remeter a V. Exa., para os fins tidos por convenientes, cópia digitalizada do despacho proferido pelo Exmo. Senhor Vogal  da 2ª Instância da área do Tribunal da Relação do Porto, que mereceu a concordância de sua Excelência o Senhor Vice-Presidente do CSM.

Com os melhores cumprimentos,
 
Gabinete de Apoio ao Vice-Presidente e Membros
Conselho Superior da Magistratura


Procedimento nº 2021/GAVPM/4148
Denunciante: José Pedro Almeida Arroja
Relator vogal: Filipe Nunes Caroço

JOSÉ PEDRO ALMEIDA ARROJA, professor universitário, veio, por email de 26.3.2024, manifestar o que alegou ser a sua “mais profunda indignação” pela situação que já descreveu em email que enviou ao Sr. Presidente da Relação do Porto, considerando que dois juízes daquele Tribunal Superior o condenaram, apesar da sua inocência, violando “a jurisprudência em vigor no país”. Não obstante, um deles “até já foi promovido pelo CSM a juiz do Supremo”.

Termina assim a sua exposição:

“Como os juízes estão protegidos por um regime de imunidade criminal no exercício das suas funções, gostaria de saber se estão previstas, ao menos, sanções disciplinares para situações como esta. Caso contrário, qualquer juiz incompetente ou corrupto fica com total liberdade para arruinar discricionariamente a vida de um qualquer cidadão inocente.”

A exposição que o ilustre cidadão dirigiu ao secretariado do Exmo. Presidente da Relação do Porto tem o seguinte teor1: “Em 2019 fui condenado pelo TRP (Proc. 5777/15.6T9MTS.P1) pelos crimes de difamação agravada ao eurodeputado Paulo Rangel e ofensa a pessoa colectiva à sociedade de advogados Cuatrecasas, de que ele era director na altura. A decisão teve como relator o Desembargador Pedro Vaz Patto, com o voto favorável do Desembargador Francisco Marcolino, e o voto contra da Desembargadora Paula Guerreiro.

1 Por transcrição

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(Pág. 2)

Considero-me um bom cidadão, professor universitário, casado há 48 anos, pai de 4 filhos e avô de 9 netos. Nunca me passaria pela cabeça cometer um crime, quanto mais dois. Recorri para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que ontem, numa decisão unânime de sete juízes (repito: unânime de sete juízes) reverteu a decisão do TRP e obrigou o Estado português a indemnizar-me e a reabrir o processo. (Case of Almeida Arroja v. Portugal, Proc. 47238/19, disponível no site deste Tribunal:https://www.echr.coe.int/). Gostaria que me fizesse a fineza de agendar uma reunião com o Senhor Presidente do TRP, Desembargador José Igreja de Matos, para que eu lhe possa exprimir pessoalmente, enquanto cidadão, o meu profundo desagrado pela qualidade do trabalho feito no TRP.”

Vejamos, liminarmente.

A exposição deve ser entendida como uma participação disciplinar contra os dois Srs. Desembargadores em referência.

Dispõe o artigo 109.º, nº 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais2, que “oprocedimento disciplinar é o meio de efetivar a responsabilidade disciplinar” dos juízes.

De acordo com o subsequente artigo 110.º, “compete ao Conselho Superior da Magistratura a instauração de procedimento disciplinar contra magistrados judiciais”, sendo este o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial (subsequente artigo 136.º e artigo 217.º, nº 1, da Constituição da República).

Constituem infração disciplinar os atos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos princípio e deveres consagrados no Estatuto dos Magistrados Judiciais e os demais atos por si praticados que, pela sua natureza e repercussão, se mostrem incompatíveis com os requisitos de independência, imparcialidade e dignidade indispensáveis ao exercício das suas funções (cf. artigo 82.ºdo Estatuto dos Magistrados Judiciais).

No essencial, o ilustre participante imputa a dois dos Srs. Desembargadores subscritores de um acórdão que o condenou em processo de natureza criminal, com indemnização civil a favor de lesados, a violação da jurisprudência nacional e,

2 Aprovado pela Lei nº 21/85, de 30 de julho, sucessivamente alterada, tendo sido a sua última modificação introduzida pela Lei nº 2/2020, de 31 de março.

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(Pág. 3)

presumivelmente, da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direito do Homem que, na sequência de recurso, condenou o Estado português a indemnizá-lo e a reabrir aquele processo.

De acordo com o artigo 6.º-C do Estatuto dos Magistrados Judiciais, os juízes, “no exercício das suas funções, devem agir com imparcialidade, assegurando a todos um tratamento igual e isento quanto aos interesses particulares e públicos que lhes cumpra dirimir”.

O princípio da imparcialidade dos tribunais é universalmente aceite e, a par da independência, é tratado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na expressão de que “todo o ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre os seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”.

Princípios idênticos resultam do artigo 6.º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, do artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do artigo 14.º, nº 1, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

O artigo 202.º, nº 1, da Constituição da República, consagra a natureza soberana dos tribunais e o subsequente artigo 203.º consigna que “os tribunais são independentes” e que “apenas estão sujeitos à lei”.

Constitui, assim, princípio elementar ao Estado de direito democrático que os juízes devem decidir todos os casos que lhes são submetidos com rigorosa independência e imparcialidade, com base nos factos e em conformidade com a lei, enquanto valores da própria Justiça. Devem ser alheios aos factos que julgam e apreciar as provas em consciência, com liberdade e isenção, sem dependências ou limitações (que não sejam as que resultam da lei), em ordem a uma decisão justa. São regras essenciais e estruturantes do julgamento judicial e da decisão que a todos vincula, trate-se de entidade pública ou de entidade privada, prevalecendo também sobre as decisões de quaisquer outras entidades.

Sendo o juiz passível de responsabilidade disciplinar, designadamente por violação de deveres funcionais, em que se inclui o dever de imparcialidade, cumpre referir que uma participação para tal efeito não constitui o início automático de um procedimento disciplinar.

Dado o já referido conceito de infração disciplinar e a forma como os deveres dos juízes se encontram legalmente descritos, por regra, com referência a conceitos vagos e indeterminados, existe discricionariedade administrativa do Conselho Superior da

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(Pág. 4)

Magistratura na decisão de promover, ou não, o procedimento disciplinar, enquanto expressão do princípio da oportunidade na prossecução daquele procedimento.3 Este apenas deve ter lugar se existirem indícios da prática de atos que constituam infração com aquela natureza, sempre em função do interesse público na boa administração da justiça, sustentado na qualificação de atos como infrações disciplinares imputáveis aos juízes, nos termos do citado artigo 82.º. O processo disciplinar não pode nem deve ser usado como um instrumento de vendetta ou sequer para o exercício de direitos particulares. Se, face à participação e a outros elementos disponíveis, for de concluir pela inexistência de indícios de infração disciplinar à luz da lei aplicável, a participação deve ser arquivada.

A competindo disciplinar do Conselho Superior da Magistratura exercer a ação disciplinar relativamente aos magistrados judiciais (artigos 110.º e 149.º, nº 1, al. a), do Estatuto dos Magistrados Judiciais) não retira a natureza administrativa do órgão nem lhe confere poderes jurisdicionais. Não pode interferir ou, de algum modo, influenciar as decisões dos tribunais ou perturbar a imparcialidade e a independência dos juízes, sob pena de atentar contra a soberania dos tribunais e o princípio do Estado de direito (citados artigos 202.º e 203.º da Constituição da República).

O controlo das decisões judiciais faz-se exclusivamente pela via do recurso, que, aliás, o participante utilizou. E os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvo as exceções consignadas na lei, entre as quais a responsabilidade disciplinar (artigo 216.º, nº 2, da Constituição da República, artigos 3.º. 4.º e 5.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais).

Com efeito, importa averiguar se, pela indiciação de factos suscetíveis de responsabilidade, há fundamento válido para a instauração daquele procedimento. Ora, sem desnecessárias delongas, o que se constata não é mais do que um desacordo dos juízes que subscreveram o acórdão condenatória proferido pela Relação: uma maioria de 2 juízes Desembargadores obteve vencimento sobre a Sra. Desembargadora que votou vencida. 

Negado o recurso para o STJ, alega o participante que interpôs recurso para o TEDH, ali obtendo o direito a uma indemnização e à repetição de atos processuais no processo-crime, ficando sem efeito aquela decisão maioritária. Nada mais se indicia do que a prática da liberdade de julgamento e da utilização normal dos mecanismos legais, seja pelos juízes, seja pelo recorrente, aqui participante. A divergência interpretativa na aplicação da lei faz parte da liberdade de

3 Neste sentido, Estatuto dos Magistrados Judiciais anotado e comentado, Carlos Castelo Branco e Eusébio Almeida, 2020, pág. 685; cf. também acórdão do STJ de 10.12.2019, proc. 86/18.1YFLSB. 

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(Pág. 5)

julgamento e independência do juiz, assim como do esforço contínuo do seu aperfeiçoamento. A jurisprudência é dinâmica, mesmo quando é uniformizada. De parte alguma da participação disciplinar se extrai, sequer indiciariamente, que o Exmo. Relator ou o Exmo. Ajunto subscritores da posição vencedora do acórdão da Relação do Porto sofreram qualquer influência externa, agiram na defesa de qualquer interesse estranho ao fim do processo, com consciência e intenção e não realizar a justiça do caso ou em qualquer modo de violação de deveres estatutários e funcionais incompatível com os requisitos de independência, imparcialidade e dignidade indispensáveis ao exercício do cargo.

Nesta decorrência, temos como inquestionável e impositivo o arquivamento liminar da participação apresentada pelo Sr. Prof. José Pedro Almeida Arroja, por manifesta inexistência de fundamento válido de responsabilidade disciplinar relativamente aos dois Exmos. Senhores Desembargadores visados.

Eis o que se propõe, com comunicações habituais.
Ao Exmo. Sr. Vice-Presidente.
*
Lisboa, 4 de abril de 2024
Filipe Manuel Nunes Caroço
Vogal

(Continua acolá)

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