(Continuação daqui)
66. A Verdade
Um autor britânico que viveu entre nós durante o período da revolução republicana de 1910, a certa altura observou um facto curioso acerca dos portugueses e dos líderes revolucionários. Os republicanos pensavam que, pelo facto de os portugueses estarem constantemente a dizer mal dos padres e a inventar anedotas sobre os padres, queriam ver os padres e a Igreja daqui para fora.
Mas não - concluía ele -, a verdade é que os portugueses não podiam passar sem os padres e a Igreja, e se Afonso Costa quis expulsar a Igreja de Portugal, afinal, quem acabou expulso foi ele (exilado em Paris).
Por que é que os portugueses não conseguiam passar sem a Igreja e, agora que a sociedade se laicizou, não conseguem passar sem o Estado? Mas que protestantes são esses que passavam o tempo a dizer mal da Igreja e agora passam o tempo a dizer mal do Estado, mas que não podiam passar sem a primeira e agora não podem passar sem o segundo?
Que protestantes de Café serão esses?
A razão para este aparente paradoxo é que, na cultura católica de Portugal, a Verdade chega às pessoas através da autoridade. Os portugueses precisam de uma instituição de autoridade para os conduzir na vida, a qual, ao longo da sua história tem sido a Igreja, depois o Estado e, no último século, o Estado e a Igreja em equilíbrios diversos (actualmente, mais o Estado do que a Igreja).
Na cultura católica chega-se à Verdade (Deus) através da autoridade (da Igreja).
E na cultura protestante, não é assim?
Não. Na cultura protestante chega-se à Verdade (Deus) através da liberdade (i.e., do debate livre das Escrituras).
A este propósito, vale a pena contrastar o acórdão da Relação do Porto que me condenou (cf. aqui) e o acórdão do TEDH que me inocentou (cf. aqui).
No primeiro, é a autoridade do Estado (através do TRP), pela mão do juiz desembargador Pedro Vaz Patto, que decide, no assunto vertente, o que é verdade e o que não é verdade, concluindo que eu estava a mentir acerca do Paulo Rangel e da Cuatrecasas e que sou intelectualmente desonesto.
É caso para perguntar, como aliás faz a juíza Paula Guerreiro na sua declaração de voto: Se eu estava a mentir porque é que o Paulo Rangel não foi lá ao Porto Canal, tal como o convidei, repôr a verdade e demonstrar em público que eu era um mentiroso?
É esta questão que está imanente no acórdão do TEDH que, relevando de uma cultura protestante e democrática, espera que a verdade seja atingida pelo debate livre, e não pela autoridade do Estado representada por um juiz.
O acórdão vai mais longe ao dizer que no debate político e no debate sobre questões de interesse público todas as afirmações podem ser consideradas juízos de valor (opiniões), e não juízos de facto, sendo que somente em relação a estes se aplicam os critérios da verdade (exceptio veritatis):
71. The Court reiterates that while the existence of facts can be demonstrated, the truth of value judgments is not susceptible of proof (...)
72. In order to distinguish between a factual allegation and a value judgment, it is necessary to take account of the circumstances of the case and the general tone of the remarks, bearing in mind that assertions about matters of public interest may, on that basis, constitute value judgments rather than statements of fact (...)
Por outras palavras, na consideração do TEDH, eu não tinha que provar coisa nenhuma acerca daquilo que afirmei sobre o Rangel ou a Cuatrecasas. São meras imputações que podiam ter sido rebatidas pelos visados, se tivessem aceite o convite que lhes fiz.
Mas não, em lugar disso, foram-se queixar ao Estado e o Estado condenou-me. Ora, é isso que o TEDH não aceita, o Estado não tinha que se meter no assunto, não tinha que interferir com a minha liberdade de expressão, e, por isso, é o Estado que sai condenado pelo TEDH.
Acerca da autoridade ou da liberdade como o caminho para chegar à Verdade, gostaria de terminar com uma pergunta. Não sem antes reiterar que, na minha condição de professor, pai e avô de muitos netos, a imputação que mais me doeu no acórdão do juiz Vaz Patto, foi a de que eu era um mentiroso ("intelectualmente desonesto").
A pergunta é esta:
-Como é que este morcão, à distância de quatro anos, sem ter presenciado os acontecimentos, sem sequer ter estado presente no julgamento de primeira instância onde, apesar da encenação, foram referidos alguns factos sobre aquilo que aconteceu, como é que um morcão destes - repito -, do alto do seu cadeirão no Tribunal da Relação do Porto, assoberbado pelos múltiplos cargos que desempenha na vida pública, se atreve a decidir o que é verdade e o que é mentira, quem fala verdade e quem é mentiroso?
(Nota: Trato-o, obviamente, com a mesma consideração com que ele me tratou a mim, que é a consideração devida a um mentiroso e a um criminoso)
(Continua acolá)
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