10 março 2024

Mil e uma (29)

 (Continuação daqui)



29. Um Papa dos crimes

De todas as características que distinguem a cultura católica da cultura protestante, a mais importante é talvez o personalismo. É o personalismo católico que torna cada indivíduo uma pessoa, que lhe confere uma personalidade que o distingue de todos os outros, que faz dele, enfim, um ser único e irrepetível, uma espécie de joia humana, como não há outra igual.

A personalidade afirma-se pela diferença, por ser aquilo que os outros não são, por não ser aquilo que os outros são, por fazer aquilo que os outros não fazem e por não fazer aquilo que os outros fazem. O protestantismo acabou com a diferença para enfatizar a igualdade entre todos os seres humanos, e fez de cada pessoa um mero indivíduo. Para isso muito contribuiu o papel secundário que atribuiu à mulher em relação ao homem porque existe muito mais diferença entre as mulheres do que entre os homens. A diferença é um atributo feminino muito mais que masculino. O contrário para a igualdade.

Na cultura protestante, que é uma cultura masculina e de igualdade, é possível formar consensos, estabelecer regras gerais e abstractas que se aplicam a todos porque todos são supostos iguais. Na cultura católica, que é uma cultura feminina e de diferença, reina a discórdia, cada um é diferente dos outros, na realidade, ele afirma-se precisamente por ser diferente dos outros, não há regras gerais, cada caso é um caso.

Esta é a razão para a cultura de jurisprudência que existe nos países de tradição protestante, a que fiz referência no post anterior - uma cultura que se traduz na elaboração de regras gerais e abstractas de interpretação das leis -  e que não existe num país católico como Portugal em que, a respeito de cada classe de casos, a "jurisprudência" se traduz num amontoado de decisões judiciais divergentes e frequentemente contraditórias, sem qualquer nexo racional que as una.

E por que é que as coisas se passam assim num país católico como Portugal?

Por virtude do personalismo católico que está presente nos juízes como em  qualquer outro português. Perante um caso semelhante ao do seu colega, um juiz português afirma-se na sua qualidade superior de juiz se proferir uma sentença diferente da do seu colega, e até oposta. 

(Levado ao extremo, num país católico o paradigma do grande juiz  - o super juiz - é tão diferente dos outros juízes que acaba por não ser juiz nenhum, mas um acusador que põe as pessoas arbitrariamente na cadeia).

É preciso não esquecer que a religião católica é uma religião de pessoas, na realidade, uma religião de uma pessoa - Jesus Cristo, representado pelo Papa - uma pessoa que está acima da lei e que ele próprio tem o poder para fazer as leis e as interpretar. Para o português comum, o paradigma da felicidade, o seu encontro com Deus, realiza-se quando consegue chegar a uma posição onde é ele o Papa, o chefe, o mandarim, o rei absoluto, em que é ele próprio, e mais ninguém, quem define o que é a lei e a sua interpretação, sem ter de dar satisfações a ninguém.

O personalismo católico torna impossível qualquer tentativa de fazer jurisprudência em Portugal, a qual se resume a mera casuística que torna a justiça radicalmente arbitrária - cada cabeça sua sentença. E se isto é assim na magistratura judicial, na magistratura do Ministério Público a situação não é mais brilhante.

Nos termos da Constituição, o Ministério Público é uma magistratura hierarquizada que tem no seu vértice o Procurador-Geral da República, segundo a qual cada magistrado tem de prestar contas e obedecer aos seus superiores. Porém, num país marcado pelo personalismo católico cada magistrado ambiciona ser o patrão de si próprio, ser ele a decidir o que é crime e o que não é crime, quem é criminoso e quem não é criminoso, sem ter de dar explicações a ninguém.

A força do Sindicato conseguiu acabar com esta relação hierárquica e dar a cada magistrado do Ministério Público o poder para ser patrão de si próprio, não ter de prestar contas a ninguém,  ser um Papa dos crimes, decidindo ele próprio, pela sua própria cabeça,  o que é crime e o que não é crime, o que é indício e o que não é indício, o que é suspeita e o que não é suspeita, se o vizinho é criminoso ou não é criminoso, o mesmo para o presidente do clube de futebol adversário ou para o chefe do partido político que ele abomina.

O povo português não é muito letrado nem tem muito julgamento porque sempre se habituou a receber a Verdade a partir da autoridade dos padres sem ter de exercitar a sua própria cabeça e o seu próprio julgamento para lá chegar. Por isso, é pertinente a pergunta:

-Já se imaginou o que é dar a um matarruano este poder absoluto para acusar ou lançar suspeitas sobre qualquer pessoa?

É por isso que os portugueses hoje vão às urnas.  Por causa do Ministério Público e da  "Justiça" que têm.

(Continua acolá)

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