10 março 2024

Mil e uma (28)

 (Continuação daqui)



28. Jurisprudência

Uma das situações em que a pobre tradição jurídica de um país católico como Portugal é mais danosa para a democracia é a que diz respeito à jurisprudência.

A democracia é um regime de regras, em que cada um é livre de prosseguir os fins que se propõe na vida, mas dentro do quadro definido pela Lei, e é por isso que ao regime democrático anda associada a ideia do Estado de Direito ou Rule of Law.

Fazer leis claras e que todos possam compreender é um bem essencial na democracia, mas não basta. Mesmo as leis mais claras às vezes são passíveis de mais do que uma interpretação. Daí que a interpretação que os tribunais dão às leis seja uma matéria igualmente crucial para a democracia, a fim de que cada cidadão possa "saber as linhas com que cose".

A jurisprudência é o conjunto de princípios ou regras que os tribunais usam na interpretação das leis e que, de forma geral e abstracta,  se aplicam a cada classe de casos judiciais. É a jurisprudência que, num país de tradição democrática, obriga os juízes - também eles -, a submeterem-se a regras nas decisões que tomam, evitando decisões arbitrárias ou persecutórias. 

Suponhamos que, durante uma arruada eleitoral, um cidadão se dirige a um político e lhe diz "Vai para o caralho", que é a expressão ofensiva mais usada pelos portugueses. O político queixa-se ao Ministério Público por ofensa à sua honra (crime de injúria), o qual comporta uma pena que pode chegar a prisão. 

Está aqui em causa o conflito entre o direito à honra do político e o direito à liberdade de expressão do cidadão. Há crime ou não há crime?

Em Portugal, ninguém sabe. É um caso de "previsões só no final do jogo". Existem dezenas e dezenas de decisões judiciais em que a expressão "Vai para o caralho" foi considerada crime pelos tribunais portugueses (prevalecendo o direito à honra sobre o direito à liberdade de expressão) e outras tantas em que não foi considerada crime (prevalecendo o direito à liberdade de expressão sobre o direito à honra). 

É diferente no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que é um tribunal criado por países com tradição democrática e influência protestante. Este tribunal publica a jurisprudência de cada classe de casos que vão à sua apreciação. À luz dessa jurisprudência, cada cidadão sabe a priori se mandar um político para o caralho é crime ou não é crime. A resposta é um rotundo e claríssimo não. 

Na verdadeira tradição democrática, a jurisprudência inclui as regras a que os próprios juízes têm de obedecer nas decisões que tomam. São estas regras, formuladas de maneira geral e abstracta, que asseguram um dos mais importantes princípios de justiça numa sociedade democrática - o princípio da segurança jurídica.

Então, e os tribunais portugueses não produzem jurisprudência?

A resposta a  esta questão é um pouco divertida. Tendo Portugal chegado tardiamente à democracia e possuindo um cultura católica, que é uma cultura mimética que imita tudo,  também se faz jurisprudência por cá. Na verdade, o site de qualquer tribunal superior do país tem lá uma secção de jurisprudência.

A imitação é que não é muito boa. É que a verdadeira jurisprudência é um conjunto de regras gerais e abstractas que se aplicam a cada classe de casos, ao passo que para os tribunais portugueses a jurisprudência é um amontoado de decisões judiciais, quase sempre divergentes e frequentemente contraditórias, acerca das quais não é possível discernir qualquer fio condutor.

Num caso, um cidadão foi condenado por mandar para o caralho um político. No outro foi absolvido por mandar para o caralho um árbitro de futebol. A justiça torna-se aleatória e ninguém acredita nela.

(Continua acolá)

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