08 março 2024

Mil e uma (26)

 (Continuação daqui)



26. Um Estado Pessoal

O judaísmo é uma Religião do Livro, um religião que está centrada num Livro sagrado (Bíblia Judaica, correspondendo aos cinco primeiros Livros do Antigo Testamento). O judaísmo é também uma Religião de Direito (do latim "directus", uma palavra que significa regra), uma Religião de Regras. A religião judaica exprime-se em 613 regras ou mandamentos que os judeus devem observar.

A ideia do Estado de Direito é, em primeiro lugar, uma criação judaica - a ideia que põe a lei acima de tudo, acima das pessoas inclusivé porque, para os judeus, Deus está na Lei, não nas pessoas.

O cristianismo, tal como interpretado pela Igreja Católica, não é nada disto. O cristianismo é uma Religião de Pessoas porque está centrado numa Pessoa - Jesus Cristo. Deus está numa Pessoa - Cristo -, e só secundariamente no Livro. O cristianismo reconhece a importância do Livro sagrado (Bíblia Católica), mas esse nem sequer é o Livro que a Igreja mais recomenda aos crentes. Este último é o Catecismo da Igreja Católica, que interpreta a Bíblia à luz dos ensinamentos de Cristo e da experiência histórica da humanidade (Tradição). 

O cristianismo é também uma Religião da Palavra (Pregação ou Persuasão), a Palavra de Cristo que Ele transmitiu aos apóstolos - a Pedro em primeiro lugar -, e que deste, por uma processo de transmissão ("tradição") ou sucessão apostólica, chegou até nós na pessoa do Papa Francisco.  

A ideia de Estado conforme à cultura católica, não é a ideia de um Estado de Direito, mas a de um Estado Pessoal, de que o exemplo acabado é o Vaticano. Nele, o Chefe de Estado está acima da lei, é ele que, em cada momento, faz a lei, ele tem um poder supremo e absoluto, que a todo o momento pode exercer, para alterar as leis existentes, e criar novas leis. Este é um Estado que põe as pessoas acima da lei e que olha para a lei como um instrumento ao serviço das pessoas e não, como o Estado de Direito, que olha para as pessoas como um instrumento ao serviço da lei.

Para os católicos, Cristo é ao mesmo tempo homem e Deus e essa pessoalidade do cristianismo católico exprime-se, em cada momento, na pessoa do Papa e, mais geralmente, nas pessoas dos padres, que são imitações de Cristo. Para os católicos também, e ao contrário dos judeus -, para quem Deus está somente no Livro (Bíblia judaica) -, Deus está no Livro (Bíblia Católica) e na Tradição. A Tradição é o processo de transmissão dos ensinamentos de Cristo, à luz da experiência da humanidade, mantido pela Igreja e pela sucessão apostólica dos Papas.

A revolta protestante do início do século XVI foi desencadeada por Lutero na Prússia e teve um largo apoio dos judeus que poucos anos antes, por acção dos reis católicos Fernando e Isabel, haviam sido expulsos de Espanha - que era, na altura, o centro do catolicismo no mundo -, e foi largamente influenciada pelo judaísmo.

Rejeitando os Papas e a Tradição, e acreditando que Deus se encontra apenas no Livro Sagrado (Bíblia protestante), segundo o princípio protestante "Sola Scriptura", os protestantes aproximaram-se dos judeus. O cristianismo protestante tornou-se uma Religião do Livro, uma letra morta, um conjunto de regras que os crentes deviam estudar,  discutir e adoptar nos seus comportamentos diários. O protestantismo, tal como o judaísmo, tornou-se uma Religião de Direito, uma Religião de Regras. O Cristo pessoal e vivo do catolicismo, que está constantemente no meio de nós, na pessoa do Papa, desapareceu de cena. 

O Estado de Direito (Rule of Law) que hoje existe em Portugal é uma tradição judaico-protestante, totalmente fora da cultura católica dos portugueses. Os portugueses não acreditam que  a lei deva estar acima das pessoas. Os portugueses acreditam que as pessoas, pelo menos uma Pessoa - um homem dentre eles - deve estar acima da lei e ser Ele o guardião das tradições e das leis que se aplicam a todos.

O Estado de Direito não tem qualquer futuro em Portugal. É uma heresia cultural.

(Continua acolá)

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