07 março 2024

Mil e uma (25)

 (Continuação daqui)



25.  Zé Ninguém

Quando em 1776, o mesmo ano da Declaração de Independência dos EUA, o filósofo escocês Adam Smith publicou o seu livro "A Riqueza das Nações", que viria a dar origem à moderna ciência económica, governava em Portugal o Marquês de Pombal. 

Adam Smith era um presbiteriano convicto, uma corrente do calvinismo fortemente adversa ao catolicismo. A originalidade do pensamento de Smith foi a ideia de mercado, descrito como um processo impessoal que compatibilizava os planos de compradores e vendedores a um certo preço, sem a interferência da autoridade política, assim como que por acção de uma "mão invisível".

Smith defendia que na grande sociedade que ele via abrir-se diante dos seus olhos, o mercado iria substituir o Estado como coordenador da actividade económica das nações. E, na realidade, os pais fundadores americanos, que eram familiares com as ideias de Smith, em breve as poriam em prática na Constituição de 1789 dando origem ao país que muito rapidamente se tornaria a maior potência económica do mundo.

Para ilustrar o contrário das novas ideias económicas que propunha, Smith apontava Portugal - onde, na altura, nada se podia fazer sem a autorização da "mão visível" do Marquês -, como o exemplo acabado do país miserável (beggarly), retrógrado (backward) e mal-governado (misgoverned). 

Na origem desta diferença está o contraste entre o carácter ideológico do protestantismo em que Deus existe como ideia impessoal e abstracta, e o carácter pessoal e concreto do catolicismo, em que Deus existe como pessoa concreta representada pela figura do Papa

Os protestantes são capazes de conceber ideias abstractas e impessoais e viver sob os seus resultados, como é o caso da ideia do mercado. Diz-se que o mercado é um processo impessoal no sentido seguinte. Os seus resultados (v.g., preço, quantidades transaccionadas por período) são determinados por decisões pessoais de milhares de compradores e vendedores, mas não existe uma só pessoa que tenha um peso decisivo no resultado final. E isto é tanto mais assim quanto mais concorrencial for o mercado. 

Ora, é este carácter impessoal do mercado que uma população católica nunca aceita. Para um católico, deve existir sempre uma autoridade pessoal no controlo de todos os processos sociais - e o Papa da altura era precisamente o Marquês de Pombal. Ainda hoje, perante um mercado livre, os portugueses reclamam imediatamente fiscalização por parte da autoridade do Estado. Os portugueses são obsessivos com a fiscalização (cf. aqui). Aceitar um mercado livre em que preços e quantidades sejam determinados ao "Deus dará", isso é que nunca. Tem de haver um fiscal, pelo menos um.

Ao contrário dos protestantes, os católicos não têm confiança em processos impessoais, processos em que os seus resultados, sendo embora determinados por decisões pessoais, são aqueles em que não existe uma pessoa - um chefe, um patrão, um Papa, em suma, uma autoridade - que os controle e possa ser responsabilizado por eles.

Ora, um processo impessoal é também o processo da democracia política que, tal como o mercado, é uma invenção protestante. O partido que ganha as eleições é determinado por decisões pessoais, mas não existe uma única pessoa - uma autoridade, um chefe, um Papa - que tenha uma influência decisiva nesse resultado final. Esta impessoalidade do processo democrático é o primeiro choque cultural que a democracia causa nos portugueses.

Mas logo a seguir vem outro, ainda mais pesado. Numa cultura, como é a católica, onde cada ser humano é alguém, uma pessoa e não um mero indivíduo, um ser único e irrepetível, diferente de todos os outros, uma preciosidade humana, a democracia faz dele um Zé Ninguém. Numa população de 10 milhões de votantes, o voto de cada pessoa pesa 0,00001% no resultado final, isto é, não conta nada. Quer essa pessoa vote quer não vote, o resultado final da eleição em nada é alterado - um grande convite à abstenção e a que essa pessoa volte as costas à democracia.

A cultura católica, à semelhança da Igreja Católica, é uma cultura monárquica e aristocrática, que segmenta verticalmente a sociedade em vários estratos e adora títulos. Já se imaginou o que é, nesta cultura, dizer a um conde, a um cardeal, a um doutor, a um engenheiro, a um general que ele é um Zé Ninguém? E dizer isso a uma mulher que, na cultura católica, tem o estatuto de rainha?

Pois é isso mesmo que a democracia lhe diz.

(Continua acolá)

Sem comentários: