06 março 2024

Mil e uma (23)

 (Continuação daqui)




23. A pobre imitação


A Inglaterra (Reino Unido) não possui uma Constituição, mas possui uma tradição constitucional de que os dois principais documentos são a Magna Carta (1215) e o Bill of Rights (1689). A Inglaterra não possui uma Constituição, mas a primeira Constituição no mundo foi produzida numa colónia inglesa - a Constituição Americana (1789).

Se fosse possível resumir numa frase aquilo que representa a tradição constitucional, qual seria a frase a eleger?

A seguinte: "A Constituição visa limitar os poderes do Estado, garantindo uma esfera privada de liberdade a cada pessoa".

Na realidade, o primeiro documento constitucional britânico - a Magna Carta - resultou de uma revolta dos nobres ingleses face ao rei absoluto, que traçou uma linha vermelha que o rei não poderia ultrapassar. Do lado de cá dessa linha ficavam certos direitos individuais, como o direito à liberdade religiosa, o direito de acesso à justiça rápida, o direito a resistir à prisão ilegal, o direito a não aceitar impostos sem representação.

É esta mesma ideia da exaltação dos direitos individuais que se encontra nos documentos constitucionais americanos, como a Declaração de Independência (1776) e a própria Constituição (1789), impedindo o Estado de ultrapassar a linha vermelha, e incumbindo-o mesmo de proteger a esfera dos direitos individuais dos cidadãos.

Isto é assim na tradição protestante onde cada homem é suposto chegar por si próprio a Deus e o caminho para lá chegar é o da liberdade.

E qual será o resultado de procurar imitar esta tradição constitucional num país católico como Portugal, onde as pessoas são tomadas como sendo radicalmente incapazes de chegar a Deus pelos seus próprios meios e ficam à espera que a autoridade do padre lhes diga como lá chegar em comunhão com os outros?

O primeiro aspecto a salientar é o da comunhão. Uma Constituição portuguesa também vai mencionar os direitos individuais, como o direito à vida e o direito à liberdade, mas como a tradição católica é comunitária, vai enfatizar, não esses direitos, mas os chamados direitos sociais (comunitários), como o direito à educação, o direito à saúde, o direito ao emprego e o direito à habitação.

Ora, existe uma diferença fundamental entre os direitos individuais e os direitos sociais, que é  carácter de obrigação negativa relacionado com os primeiros e o carácter de obrigação positiva relacionado com os segundos.

Para que o meu direito à vida seja respeitado não se exige nenhum comportamento positivo dos outros, apenas que os outros não me façam certas coisas (v.g., dar-me um tiro). Para respeitar o meu direito à prossecução da felicidade eu não exijo que os outros façam alguma coisa por mim, antes que não façam alguma coisa em relação a mim (v.g., que não se metam no meu caminho). Já para respeitar o meu direito social ao emprego ou à habitação exige-se que os outros façam alguma coisa por mim - que me dêem emprego ou habitação. Não cabendo essa obrigação a nenhum cidadão em particular, ela é remetida para todos os cidadãos, tal como representados pelo Estado.

A atitude diferente do homem protestante e do homem católico em relação a Deus encontra aqui o seu paralelo na atitude diferente em relação ao Estado. O homem protestante é proactivo na sua procura de Deus e não admite que o Estado se meta no seu caminho para lá chegar (o direito à prossecução da felicidade). Pelo contrário, o homem católico fica sentado à espera que a autoridade do padre lhe diga como se chega a Deus e também fica agora sentado à espera que a autoridade do Estado lhe traga a felicidade, na forma de cuidados educacionais e de saúde, emprego, habitação, etc..

A Constituição portuguesa de 1976 não é outra coisa senão um repositório de direitos sociais que compete ao Estado satisfazer. Mas tendo atribuído essa responsabilidade ao Estado - a  de garantir a todos os cidadãos cuidados educacionais e saúde, emprego e habitação, etc. - o Estado fica também autorizado para, em nome dessa imensa responsabilidade, invadir a esfera privada dos cidadãos, tributando-os arbitrariamente ou limitando-lhes a liberdade de escolha (v.g., entre escola pública ou privada, entre saúde pública e privada, etc.).

O resultado é um Estado completamente intrusivo na vida das pessoas, que decide sobre a educação dos seus filhos, sobre os cuidados de saúde apropriados, que se preocupa em dar-lhes emprego e habitação e que, pelo caminho, e em nome dessa grandiosa missão, se sente à vontade para invadir a sua esfera privada e restringir-lhes a liberdade.

O resultado final deste pobre imitação católica da tradição constitucional protestante é um Estado que, em lugar de ser limitado nos seus poderes, é todo-intrusivo e todo-poderoso (e, por implicação, frequentemente todo-corrupto). E a mais representativa agência deste Estado todo-intrusivo é o Ministério Público que se arroga o direito de devassar a vida a qualquer pessoa.

A Constituição portuguesa, ao contrário da verdadeira tradição constitucional, em lugar de limitar os poderes do Estado, dá mais poderes ao Estado. Os constitucionalistas portugueses de 1976 foram os principais inimigos da liberdade em Portugal no último meio século, embora eles apenas reflectissem a tradição católica do país onde nasceram. Não foram capazes de pensar para além das fronteiras de Vilar Formoso e de Valença. O seu provincianismo foi atroz.

(Continua acolá)

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