27 fevereiro 2024

Mil e uma (9)

 (Continuação daqui)




9. Um instrumento de destruição

Quando os protestantes rejeitaram a Igreja Católica como a autoridade que lhes transmitia a palavra de Deus, passaram a ter uma séria questão para resolver: "Como é que o homem do povo poderia agora chegar a Deus (Verdade)"?

A resposta foi: Pelo estudo das Escrituras e pelo debate livre acerca das diferentes interpretações que elas podem suscitar.

Daqui resultaria um valor incalculável para o protestantismo e, mais tarde, para a democracia liberal a que o protestantismo iria dar lugar - a liberdade de pensamento e de expressão.

Na cultura protestante, o estudo, a liberdade de pensamento e de expressão, o debate livre e construtivo das ideias  são valores divinos porque são eles que permitem ao homem comum chegar a Deus.

Não é assim no catolicismo. Nele, o homem comum não chega a Deus estudando as Escrituras e debatendo as diferentes interpretações que elas podem suscitar. Não, no catolicismo o homem comum faz até parte daquele vasto grupo popular conhecido por "leigos", isto é, ignorantes. No catolicismo, o homem do povo chega a Deus escutando a palavra autorizada da Igreja Católica.

Para a cultura católica, a liberdade de expressão e pensamento é um valor divino, mas somente para a elite católica a quem compete discernir a palavra de Deus através das Escrituras e da Tradição. Não para o povo. Na realidade, sendo leigo e ignorante, não tendo hábitos de estudo, o que é que o homem do povo pode juntar de construtivo a uma qualquer discussão séria?

Nada.

Entregue ao povo, a liberdade de pensamento e de expressão é uma arma destrutiva porque põe nas mãos do povo, que é leigo e ignorante, um poderoso instrumento para contestar as verdades da autoridade católica. Mas não apenas da autoridade católica, na realidade, de todas as formas de autoridade - da autoridade das instituições do Estado, dos patrões, dos professores, dos pais, dos polícias, dos juízes, a lista é sem fim.

Quem assistiu aos recentes debates televisivos dos líderes partidários às eleições do dia 10 de Março rapidamente terá concluído que o debate livre das ideias não serviu qualquer fim construtivo. Pelo contrário, serviu para cada líder partidário contestar e procurar destruir o seu adversário e as suas propostas políticas.

A própria comunidade de comentadores que transformou os debates em duelos pessoais é reveladora de que na cultura católica os debates são um jogo de soma nula, em que um ganha e o outro perde - em que o objectivo é fazer parecer mal o outro e não cooperar com ele -,  e não um jogo de soma positiva em que todos podem ganhar - os debatentes e todos aqueles que os ouvem. 

(Continua acolá)

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