29 fevereiro 2024

Mil e uma (16)

(Continuação daqui)




16. A justiça

Qual será a principal diferença entre uma população que desde há séculos se habituou a estudar e a interpretar as Escrituras para conhecer a Palavra de Deus, como faz o protestantismo, e uma outra que conhece a Palavra de Deus meramente ouvindo o padre, como faz o catolicismo?

-Capacidade de julgamento.

Interpretar é julgar e essa é a principal diferença entre o povo de cultura protestante e o povo de cultura católica - a capacidade de julgamento que existe no primeiro e a sua radical ausência no segundo.

A democracia é um regime de regras (Rule of Law ou Estado de Direito) em que dos três poderes do Estado - o legislativo, o executivo o  judicial -, o mais importante é o judicial que interpreta as regras e as faz cumprir. O poder judicial é o árbitro do jogo democrático. Ora, o poder judicial, que apela à capacidade de julgamento, é precisamente o calcanhar de Aquiles da democracia num país de cultura católica.

Quando o povo de cultura católica é chamado a desempenhar as profissões judiciais - como a de juiz, magistrado do Ministério Público ou simplesmente de advogado - é uma tragédia porque o povo não tem tradição de julgamento.

A falta de julgamento do povo católico começa no poder legislativo onde as leis se multiplicam e amontoam umas sobre as outras cada uma contradizendo as anteriores. Mas é quando as leis chegam ao poder judicial, que tem de as interpretar e aplicar, que a péssima tradição jurídica - na realidade, ausência de tradição - do povo de cultura católica vem ao de cima com toda a clareza.

A mesma lei é hoje interpretada de uma maneira e amanhã de outra, frequentemente contrária. Comportamentos normais são tomados como criminosos e comportamentos criminosos são considerados normais. A excepção é interpretada como norma e a norma passa a excepção. Pessoas decentes são presas e criminosos ficam ao largo. Nesta anarquia interpretativa, safa-se o criminoso que tem conexões e dinheiro e é condenado o inocente que não tem nem uma coisa nem outra.  No caos judicial que se segue, a justiça passa a ser uma arma de perseguição pessoal e política.

Não é de mais insistir. Os juristas, exprimindo a infeliz tradição (ou ausência dela) do país em que nasceram, são a grande tragédia da democracia num país de tradição católica e é pela falta de confiança na justiça que a democracia acabará por entrar em colapso.

O árbitro do jogo democrático não sabe arbitrar e os jogadores acabam por perder a confiança no árbitro e acabar com o jogo.

(Continua acolá)

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