27 fevereiro 2024

Mil e uma (11)

 (Continuação daqui)





11. O excepcionalismo católico

Os EUA constituem o primeiro país do mundo a nascer como uma democracia liberal. E a sua Declaração de Independência (1776) começa por dizer que todos os homens são criados iguais.  Trata-se de uma meia-verdade. A verdade inteira é que todos os homens são criados iguais e diferentes - todos têm nariz mas o nariz de cada um deles é diferente dos narizes de todos os outros.

Embora a diferença pareça menor do que a igualdade quando se comparam dois seres humanos, a verdade é que a diferença é muito mais importante do que a igualdade para defender e promover o valor supremo da humanidade, que é o valor da vida. É esta a posição da Igreja Católica.

Numa população de 10 milhões de pessoas todas iguais, dizimar cinco milhões não é muito grave porque ainda lá ficam outras cinco milhões iguais às que desapareceram. Mas numa população de 10 milhões de pessoas em que todas sejam diferentes, a morte de uma só pessoa constitui uma tragédia porque ela é insubstituível - não existe outra igual.

Para a cultura protestante e democrática cada ser humano é igual a todos os outros, um mero indivíduo. Para a cultura católica cada ser humano é diferente de todos os outros, uma pessoa, um ser dotado de uma personalidade própria que o distingue de todos os outros, um ser único e irrepetível. Por outras palavras, cada ser humano é uma excepção em relação a todos os outros.

O excepcionalismo católico de que os portugueses fazem constantemente prova por virtude da sua cultura é desastroso para a democracia liberal onde todos são supostos ser tratados de forma igual.

Assim, por exemplo, o SNS permite a todos os portugueses o acesso a cuidados de saúde numa base de igualdade. Mas o seu criador, Mário Soares, era uma excepção e quando tinha necessidade de cuidados de saúde recorria ao Hospital da Cruz Vermelha, onde viria a falecer.

A cunha está igualmente proibida a todos os políticos. Mas o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, é uma excepção. E embora defenda que nenhum político possa aceitar ou meter cunhas, ele, como é uma excepção, lá vai metendo a sua.

O primeiro-ministro António Costa sempre foi um adepto das universidades públicas para que todos os portugueses tivessem acesso ao ensino superior de qualidade. Mas, atenção, ele é uma excepção, e agora que decidiu voltar à Universidade, escolheu uma Universidade privada (cf. aqui).

O candidato a primeiro-ministro Pedro Nuno Santos é um acérrimo defensor da escola pública para que todas as crianças tenham igualdade de acesso à educação. Isto é assim igualmente para todos, excepto para ele próprio que tem o filho num colégio privado.

Quer dizer, em Portugal a igualdade que a democracia apregoa é boa para todos, excepto para aqueles que têm meios para fugir dela e fazer prevalecer aquilo que está na sua cultura  - o excepcionalismo católico, que se resume num frase: "Isso é igualmente bom para todos, excepto para mim".

(Continua acolá)

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