28 fevereiro 2024

Mil e uma (12)

(Continuação daqui)



12. Uma cultura de cunhas

A religião católica é uma religião de cunhas. Pois o presidente da República de Portugal, um dos países mais genuinamente católicos do mundo, está agora a ser investigado num processo-crime aberto pelo Ministério Público por ter aceite uma cunha do filho. Ora, o próprio Jesus Cristo, enquanto viveu entre nós, não fez outra coisa senão meter cunhas ao Pai.

Ainda por cima o filho do presidente vive no Brasil, hoje em dia, em termos numéricos, o país mais católico do mundo, onde a cultura da cunha (pistolão, em brasileiro) é ainda mais intensa do que no país que a levou para lá.

O Deus católico tem um certo ar aristocrático. Ele não dá confiança ao povo e não fala directamente com o povo. Pelo contrário decidiu rodear-se de certas pessoas de confiança que lhe servem de filtro, de tal maneira que quando um homem ou mulher do povo decide dirigir-se a Ele, é remetido, em primeiro lugar, para um desses intermediários. Os intermediários ou intercessores são os padres, os santos e a própria Virgem Maria.

Uma pessoa com um familiar muito doente pede a Nossa Senhora que interceda junto de Deus para a curar, ou faz o mesmo pedido ao seu santo preferido ou ao padre da terra. Aquilo que esta pessoa está a fazer é a meter uma cunha a Deus através da Virgem, do santo ou do padre. Naturalmente, sendo o pedido bem sucedido, e não sendo a pessoa ingrata, ela vai retribuir Deus pelo favor, dando uma contribuição para a Igreja, para os pobres ou para uma associação de caridade.

A religião católica é uma Religião Pessoal, chega-se a Deus através de pessoas, como a Virgem, os santos ou o clero. O protestantismo acabou com isto, acabando com todos os intermediários entre o homem do povo e Deus - a Virgem Maria, os santos e os padres. A relação entre o homem do povo e Deus é uma relação directa, sem intermediários, e chega-se a Deus, não através de intermediários, mas somente pela fé - o princípio protestante Sola Fide.

Ora, onde não existem intermediários não existem cunhas. Por isso, a democracia liberal que é um produto da cultura protestante não admite a cunha, considerando-a um crime (tráfico de influências).

O célebre sucateiro de Ovar, figura central do Processo Face Oculta (cf. aqui), que, juntamente com gestores públicos e políticos (como Armando Vara), foi um dos primeiro portugueses a ser condenado por meter cunhas (e, honradamente, retribuí-las) não podia compreender o  que lhe estava a acontecer: O quê, é crime pedir um favor e oferecer umas garrafas de whisky e uns faqueiros como retribuição?.

O próprio Armando Vara oriundo de uma longínqua aldeia de Trás-os-Montes nunca terá reconhecido o crime: O quê, é crime fazer um favor a um amigo e depois aceitar uma compensação? Mas não é isso que fazem todos os portugueses, que até metem cunhas à Virgem Maria? Ou será que a Virgem Maria, os santos e os padres também seriam condenados hoje em Portugal por meterem cunhas a Deus?

Sim, a Virgem, os santos e os padres seriam condenados hoje em Portugal, e Deus também, os primeiros por corrupção activa, Deus por corrupção passiva. 

O próprio presidente da República já teria sido condenado - ou pelo menos, constituído arguido, ele e o filho -, se não fosse presidente da República - um caso de excepcionalismo católico que, naturalmente, deixa uma péssima imagem da democracia aos olhos dos portugueses.  Existe uma justiça para uns e outra para outros.

Abolir a cunha num país que vive há nove séculos com ela e onde até se metem cunhas a Deus é algo que a democracia liberal dificilmente vai conseguir em Portugal. É mais provável que acabe primeiro a democracia liberal do que a cunha.

(Continua acolá)

 

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