GESTORES DE PÉ DESCALÇO/ 2
Há uns anos, num jantar de graduação de uma escola do Porto, os pais da minha mesa, sabendo que eu era médico, desdobraram-se em encómios ao nosso querido Serviço Nacional de Saúde (SNS), um plágio barato do célebre e tenebroso National Health Service (NHS) do RU.
Quando eu abri a boca para me distanciar dos elogios, a cara dos circunstantes parecia a do Malagrida quando o Pombal o mandou garrotar por blasfémias, na Praça do Rossio.
Instado a defender a minha perspectiva invoquei, como exemplo, que o SNS tinha uma taxa de infeções nosocomiais (adquiridas durante o internamento) que era seguramente a mais elevada dos países desenvolvidos e que quem caísse nas suas enfermarias arriscava-se a sair (ou não) esquentado pela contaminação. Os presentes torceram o nariz...
Referi depois uma prática abominável que era o prato do dia ainda há poucos anos e que consistia em enviar para casa, à espera da carta de convocação, os doentes com neoplasias (cancros) em estadio inicial, sabendo-se de antemão que bem podiam esperar sentados e que quando a carta chegasse a situação provavelmente já seria terminal. Os “utentes” presentes demonstraram incredulidade.
O problema, adiantou um dos presentes (um gestor profissional), é falta de gestão. É necessário planear bem e obrigar as pessoas a trabalhar...
— Mas como é possível pretender que um cirurgião experiente trabalhe 40 horas por semana por cerca de 2.000,00 €/ mês? Nós caímos na situação da ex-URSS: ‹‹eles fingem que nos pagam e nós fingimos que trabalhamos››.
— Falta de gestão – prosseguiu o meu interlocutor – quem não corresponde leva com processo disciplinar com vista a despedimento!
— Bom, mas nesse caso temos de criar um KGB ou uma Stasi, com controleiros e “excomunhões”. É preciso entender que uma organização como o SNS não pode ser gerida.
— Mas por que não? – questionou-me o tal gestor profissional.
Resolvi optar pelo xeque-mate:
— O que é a gestão? – Inquiri.
Fez-se um daqueles silêncios significativos antes da resposta, que logo veio.
— A gestão é a criação de mais-valias para o acionista.
— Mas isso só confirma o que eu disse porque nem o SNS é uma Sociedade Anónima, nem o Estado pode estar à espera de mais-valias de um serviço que ele próprio financia (evitei explicar que a gestão é muito mais do que a criação de mais-valias, para não abisonhar o alegado gestor).
Mais um silêncio significativo e alguém interrompeu para terminar a contenda:
— Estou a ver que o que o Dr. defende é um sistema à americana, com milhões de pessoas a morrer na rua.
Todos sorrimos e mudamos de tema.
Conto esta história para realçar a dificuldade de alguns gestores em compreenderem o âmbito da sua própria profissão, são o que eu chamo “gestores de pé descalço”.
Mas então o SNS pode ou não ser bem gerido. A resposta é NÃO. O SNS pode ser bem administrado (o que neste momento não é), mas a diferença entre gestão e administração é como entre um Barca Velha e uma caneca de vinho da casa.
Se não percebes a diferença entre gerir e administrar, consulta o ChatGPT e não contes a ninguém porque vão pensar que és um gestor de pé descalço.
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