27 agosto 2023

O Chega e o Tribunal Constitucional (2)

 (Continuação daqui)



Da esquerda para a direita, em baixo: José Ascensão Ramos (PS), Gonçalo Almeida Ribeiro (PSD, vice-presidente), José João Abrantes (PS, presidente), José Teles Pereira (PSD), João Carlos Loureiro (PSD). Da esquerda para a direita, em cima: Maria da Assunção Raimundo (PS, renunciou em Junho de 2023), José Eduardo Figueiredo Dias (PSD), Maria Benedita Urbano (PSD), Mariana Canotilho (PCP), Joana Costa (PS), Afonso Patrão (PSD), Rui Guerra da Fonseca (PS), Carlos Carvalho (Ind.)


2. Os batoteiros da democracia

São treze os juízes do Tribunal Constitucional, dos quais dez eleitos por maioria de 2/3 pela Assembleia da República e três cooptados pelos anteriores (cf. aqui). 

Desde sempre só dois partidos - PS e PSD - fizeram maioria de 2/3 no Parlamento. De maneira que ninguém entra, ou alguma vez entrou, no Tribunal Constitucional sem ter o acordo simultâneo do PS e do PSD que, verdadeiramente, constituem o núcleo do chamado "sistema".

Sempre que o PS e o PSD tiveram necessidade de se apoiar em outros partidos para governar, concederam-lhes o privilégio de terem um representante no TC. Maria de Fátima Mata-Mouros, que entretanto terminou o mandato, foi a última representante do CDS no TC, uma herança dos tempos em que o PSD governou o país em coligação com o CDS. Para constituir a geringonça, o BE impôs ao PS uma juíza para o TC (Maria Clara Sottomayor, que renunciou em 2019, cf. aqui) e o PCP impôs Mariana Canotilho, que se encontra actualmente em funções.

Desde que o TC foi constituído, o Supremo Tribunal de Justiça passou a ser o supremo tribunal do país  somente no nome porque o TC usurpou-lhe o lugar. No vértice do edifício judicial português passou a estar um tribunal político (TC) e não um tribunal judicial (STJ), contaminando com a política todo o edifício judicial português e contribuindo fortemente para a degradação do sistema de justiça.

Dos 13 juízes que compõem o mais alto tribunal do país, sete não são juízes de todo, mas meros boys e girls dos partidos, alguns bastante grisalhos, e os outros seis, também de escolha política, são juízes, mas não necessariamente no topo da carreira (cf. aqui). (A carreira de juiz tem três degraus, juiz de direito, que é o juiz dos tribunais de primeira instância, juiz desembargador, que é o juiz dos tribunais da Relação e juiz conselheiro, que é o juiz do Supremo). 

Pois a maioria dos juízes do Tribunal Constitucional, que nem sequer são juízes, entram para o mais alto tribunal do país sem nunca terem feito um julgamento na vida, e a entrada é pelo telhado, com a categoria de juízes conselheiros. Trata-se do lugar mais bem pago da função pública  e, portanto, o mais desejado tacho que os boys e girls dos partidos podem ambicionar e que, nos termos da lei, está corporativamente reservado a juristas.

O Tribunal Constitucional assume-se como o guardião da Constituição e o árbitro da democracia em Portugal. Ele foi constituído em 1982, sucedendo ao Conselho da Revolução para guardar os ideais da revolução socialista de 1974, e é isso que ele tem feito. É controlado por dois partidos socialistas, PS e PSD - ambos, é certo, do socialismo democrático ou da social-democracia -, que ocasionalmente abrem a porta aos seus partidos-muleta, como o CDS, num caso, o BE e o PCP, no outro. Actualmente, é composto por seis membros ligados ao PSD, cinco ao PS, um ao PCP e um independente (provavelmente um independente-PS).

A questão que se coloca é a seguinte: Como é que este árbitro da democracia vai decidir quando estiver em jogo um Partido como o Chega que se diz outsider, ostensivamente anti-sistema e anti-socialista?

Vai reagir como tem reagido nos últimos acórdãos, fazendo batota.

A batota tem revestido várias formas, a principal é alterar as regras do jogo, as chamadas regras jurisprudenciais, exigindo ao Chega aquilo que não exige a nenhum outro Partido, e escrutinando o Chega de maneira que nunca escrutinou nenhum outro Partido.

Por exemplo, tradicionalmente, o Tribunal Constitucional anotava as alterações aos estatutos aprovadas pelas assembleias magnas dos partidos.  A partir do momento em que o Chega entrou em campo, tudo mudou. O Tribunal Constitucional passou a escrutinar essas alterações, uma a uma e ao detalhe, com o objectivo de encontrar motivos para recusar o seu registo.

Assim, no acórdão já citado 571/2022 (cf. aqui), de que foi relatora a juíza Mariana Canotilho, o Tribunal Constitucional foi ao ponto de considerar excessivos os poderes que a Convenção Nacional do Chega conferia ao seu presidente. O TC substituiu-se à assembleia magna do Partido na tentativa de fazer um Chega à sua maneira, imagina-se que um Chega dócil, pró-sistema e, naturalmente, socialista.

Tendo recusado os poderes que a Convenção Nacional do partido atribuiu ao seu presidente, o TC podia ao menos ter indicado quais eram os poderes que considerava razoável atribuir-lhe. Talvez a próxima Convenção Nacional lhe fizesse a vontade. Mas não, não disse nada.

Pode, portanto, acontecer que uma próxima Convenção Nacional decida reduzir os poderes ao presidente, mas quando esta alteração chegar ao TC, este considere que os poderes  do presidente continuam ainda a ser excessivos. 

Esta é a pior forma de batota e a batota mais miserável, uma verdadeira chantagem. Dizer a alguém que está a violar as regras, mas nunca lhe dizer quais são as regras, com o objectivo de manter sobre a vítima um poder absolutamente discricionário.

As coisas já chegaram a um ponto em que  há juízes do próprio Tribunal Constitucional a considerar que aquilo que se tem feito ao Chega é uma injustiça e uma inaceitável batota. 

Aconteceu assim com o juiz Afonso Patrão  no acórdão 504/2023 (cf. aqui) que anulou a Convenção Nacional do Chega realizada em Santarém, em Janeiro deste ano. Na sua declaração de voto de vencido, diz a certa altura:

 "2. A posição que fez vencimento materializa uma inversão da jurisprudência deste Tribunal (Acórdãos nºs. 533/2022, 539/2022, 677/2022, 471/2023 3 832/2022, este último tirado em plenário, por unanimidade)".

Quer dizer, as regras aplicadas ao Chega, para julgar este caso, foram diferentes (na realidade, opostas) daquelas que o Tribunal Constitucional costumava utilizar para julgar casos deste tipo. É um juiz do Tribunal Constitucional a chamar batoteiro ao próprio Tribunal Constitucional. 

O juiz Afonso Patrão estava designado para ser o relator deste acórdão. Acabou por renunciar e ceder o seu lugar a um colega por não poder concordar com esta intolerável batota. As regras do jogo mudam segundo a equipa que está em campo. 

(Continua acolá)

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