10 agosto 2023

O assalto (14)

 (Continuação daqui)


14. Uma presa de caça




Um português que regressou há três anos ao país após viver 12 anos no Reino Unido constatava recentemente comigo: "Em Inglaterra, quando há um diferendo entre o Estado e um cidadão (v.g., de natureza burocrática ou fiscal) presume-se que é o cidadão que tem razão. Aqui em Portugal é ao contrário, presume-se que é o Estado que tem razão".

Eu não podia estar mais de acordo. Expliquei que sob a aparência de uma cultura de brandos costumes, subjaz em Portugal uma cultura de uma desumanidade profundamente cruel. Estas mesmas pessoas, aparentemente simpáticas, acolhedoras, tolerantes ao ponto da permissividade, sempre à procura que gostem delas, que são os portugueses, facilmente se convertem nos maiores torcionários que o mundo pode imaginar. É apenas uma questão de oportunidade e de circunstância.

A história de Portugal está aí para confirmar e os principais sinais permanecem inapagados. Queimar pessoas na praça pública somente para lhes deitar a mão à fortuna, sob acusações patéticas e mirabolantes, foi corrente em Portugal ainda não há muitos séculos atrás. Os cristãos-novos, que eram quase sempre ricos, foram o alvo principal.

É sobre queimar pessoas na praça pública que eu pretendo ir de volta à Operação Picoas, um eufemismo para o assalto organizado pelo Ministério Público à fortuna do empresário Armando Pereira.

Exibir o pretenso criminoso em público, como se ele fosse uma presa de caça, era parte do espectáculo inquisitorial. Esse espectáculo mantém-se hoje promovido pelo Ministério Público. Armando Pereira foi detido sob os holofotes das câmaras de televisão e das objectivas dos fotógrafos e a sua vida privada e até íntima tem vindo a ser divulgada, peça a peça, nos jornais e televisões. 

Se o espectáculo era desumano há dois ou três séculos atrás, em que vigorava o princípio ditatorial da presunção de culpabilidade, ele excede os limites da desumanidade hoje em dia em que vigora o princípio democrático da presunção de inocência. Quem promove e permite que se exiba em público um cidadão presumido inocente como se fosse um criminoso, não está a fazer justiça, está a cometer um crime e uma desumanidade.

O Ministério Público está a queimar para sempre uma pessoa presumida inocente, não já na praça do Rossio mas através das televisões e dos jornais. É isso que fazem hoje os torcionários do Ministério Público, como antes faziam os seus predecessores da Inquisição.

(Continua acolá)

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