28 julho 2023

O assalto (6)

 (Continuação daqui)


6. Um impostor institucional




O mistério que motivava a minha indignação há nove anos atrás (cf. aqui) - a saber, como é que o "juiz" Carlos Alexandre saltava de megaprocesso em megaprocesso, cada um deles com dezenas de milhar de páginas, validando crimes às centenas e distribuindo medidas de coação às dezenas - acabou por se desvendar com o tempo.

O "juiz" Carlos Alexandre não tinha sequer necessidade de ler os processos. Ele fazia aquilo que a acusação (Ministério Público) lhe dizia para fazer - prisão preventiva para este, caução de meio milhão de euros para aquele, pulseira electrónica para aqueloutro. 

Na realidade, ele era parte da acusação, trabalhava desde o início do processo com a acusação, era ele que autorizava as chamadas diligências da investigação (v.g., escutas telefónicas, levantamento do sigilo bancário, buscas, arrestos), ele era o chefe da acusação. Quando os suspeitos compareciam perante ele, e ele tinha de decidir as medidas de coação, já tinha a decisão tomada, julgava em causa própria. E, para não ter mesmo de se incomodar de todo, o próprio Ministério Público lhe fornecia as decisões numa bandeja. Era só assinar por baixo.

A tal ponto, que no caso da Operação Picoas - que é assim que é oficialmente conhecido o assalto aos empresários ligados à Altice -, quando se tratou de aplicar a medida de coação ao empresário Hernâni Antunes, o "juiz" desviou-se ligeiramente daquilo que o Ministério Público lhe tinha dito para fazer, e  causou espanto  (cf. aqui). Para aquele empresário, o Ministério Público tinha pedido prisão preventiva (num estabelecimento prisional a sério) ou, em alternativa, oito milhões de euros de caução. O "juiz" Carlos Alexandre, numa grande manifestação de independência, agora que estava de saída de funções, deu-lhe prisão preventiva, mas domiciliária, ainda por cima sem pulseira electrónica.

Se o mistério de há nove anos estava para mim resolvido, porque o "juiz" era unha com carne com a acusação (Ministério Público), então uma outra conclusão se impunha e esta, em termos de justiça, era, ao meu espírito, catastrófica: o "juiz" Carlos Alexandre não é juiz nenhum, é um impostor. Não é juiz, mas acusador.

Um juiz, que seja um verdadeiro juiz, é independente e imparcial em relação às partes - acusação e defesa. O "juiz" Carlos Alexandre não era nada disto. Era um impostor, um impostor institucional, é certo, mas ainda assim um impostor. Ele diferenciava-se do impostor vulgar apenas por uma nuance.  O impostor vulgar diz de si próprio ser aquilo que não é, ao passo que, no caso de um impostor institucional, como o "juiz" Carlos Alexandre, é o sistema institucional que diz que ele é aquilo que não é - juiz.

A impostura é geral a todos os "juízes"-de-instrução. E quando surge uma excepção, um juiz-de-instrução que queira ser um verdadeiro juiz, independente e imparcial - como foi o caso do juiz Ivo Rosa na Operação Marquês -, fugindo às garras do Ministério Público, sujeita-se a ser difamado e caluniado pelo próprio Ministério Público e perseguido na sua carreira.

Trata-se de uma impostura paralela à de chamar "magistrados" aos procuradores do Ministério Público. Eles são acusadores, não são magistrados (uma designação própria dos juízes), eles apropriaram-se da designação para se fazerem passar por juízes; nos julgamentos sentam-se ao lado dos juízes, fardados de toga como os juízes, ao ponto de as pessoas pensarem que eles também são juízes - que é exactamente o que eles querem que as pessoas pensem deles. É isso que fazem os impostores.

O nosso sistema de justiça penal está montado sobre a impostura. E é uma impostura que eu penso ser a Operação Picoas - uma operação montada para o Estado socialista deitar a mão à fortuna do homem mais rico de Portugal, devassar-lhe a vida privada e os segredos dos negócios, e lançar o opróbrio - exibindo-o na praça pública como um criminoso - sobre aquele que bem poderia ser  considerado o melhor símbolo português vivo do capitalismo de sucesso.


(Continua)

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