O FIM DA MEDICINA - Publicado no Suplemento de Saúde VIDA ECONÓMICA
Um título tão dramático corre o risco de deixar os crentes a coçar a cabeça e os cínicos a sorrirem de “schadenfreude”, deixem-me explicar com clareza o que pretendo transmitir quando falo do “Fim da Medicina”.
Vamos começar por definir o que é e o que não é a medicina.
A medicina é uma profissão que trata de promover e defender a saúde física e mental do ser humano. É uma profissão que requer uma formação de base muito prolongada (12 a 15 anos) e que obriga a uma atualização constante. Exige inteligência, talento e devoção, mas sobretudo trabalho árduo.
No seu exercício, a medicina assenta em ciências básicas como a anatomia, a fisiologia e a farmacologia, mas depende também e talvez sobretudo da experiência profissional e da capacidade de empatizar com o nosso semelhante e de estabelecer “rapport” – a denominada “relação médico/doente”.
Na prática, o exercício da medicina procede “caso a caso” – é personalizado porque as soluções propostas são únicas, adaptadas à pessoa que busca cuidados médicos. Em termos de gestão diria que cada caso que se apresenta ao médico é um projeto (1) para o qual se congregam os recursos e o tempo necessários, dentro das limitações que sempre existem.
É claro do que enfatizei que a medicina não é uma ciência. As intervenções médicas não têm resultados matematicamente garantidos. O médico explora as melhores soluções e vai adaptando por tentativa e erro de acordo com o caso e a sua evolução.
A medicina também não é veterinária, na medida em que nenhum tratamento pode ser aplicado cegamente a toda a população (à manada). A morte de um animal não passa muitas das vezes (e infelizmente) de um incómodo económico enquanto a morte de um ser humano é sempre uma tragédia, não só para a família e amigos, mas também para o próprio médico que assumiu o tratamento.
Esta possibilidade de tragédia, de maus resultados, obriga a humildade e a manter uma “expectativa armada” para atender a qualquer eventualidade que surja. Robert Kaplan, no seu livro ‹‹The Tragic Mind›› (2), fala da necessidade de reconhecermos as limitações da análise racional e de não sermos surpreendidos pelo destino.
Os médicos, pelo contacto permanente com as doenças e a morte, desenvolvem naturalmente uma certa perspectiva trágica que os obriga a ser previdentes e conservadores, explorando ao máximo o que sabem, mas não esquecendo que o que não sabem é muito mais e mais importante do que o que sabem.
Na verdadeira medicina não há massificação, nem linhas de montagem. Tal abordagem destrói a análise casuística, implica morbilidades acrescidas, tem desperdícios económicos de monta e é eticamente reprovável.
Dito isto, o que pretendo dizer com o “Fim da Medicina”?
Pretendo dizer que a época em que os médicos se dedicavam a cada caso, com toda a sua experiência e saber e ajudavam o doente a “navegar” o sistema de saúde em busca das melhores soluções, chegou ao fim.
O médico moderno é um técnico, que pouco mais sabe do que da sua área restrita e que se integra numa linha de produção para onde o sistema o empurra. O doente que cai neste sistema é canalizado para essas linhas de produção com o seu número de utente. É desumanizado e quase nunca sai satisfeito com os resultados.
O SNS é exímio neste tipo de abordagem, “chutando” o doente de Herodes para Pilatos sem que lhe seja atribuído sequer um médico. É um na consulta, outro na sala de operações, outro no pós-operatório, etc. Médico responsável: nenhum! (nenhum gestor do projeto).
O importante para o SNS é manter as linhas de produção em funcionamento, nem que seja no adicional (pagando por ato médico), sem qualquer zelo pela integração dos cuidados e pelo resultado final (honrosas exceções à parte).
É como se numa fábrica de automóveis os gestores se focassem apenas nas linhas de produção e ignorassem quantos automóveis saem da linha de montagem perfeitamente a funcionar.
— Ó pá, hoje batemos o record dos pneus — diz o capataz.
— Não digas nada, também batemos o record dos volantes, o problema é que não saiu um único carro completo.
Na saúde seria assim:
— Ó pá, hoje batemos o record das cataratas — diz o administrador da oftalmologia.
— Não digas nada, também batemos o record das próteses da anca, o problema é que os utentes nunca estão satisfeitos...
Claro que não, porque os doentes não vão aos hospitais para substituir peças. Clamam, precisam e têm direito a uma atenção particular aos seus casos. Querem ter um médico.
No setor privado empresarial a situação não é muito diferente porque as empresas da saúde replicam o “player” principal que é o SNS. Os grandes grupos tornaram-se numa espécie de mini-SNS’s com quase todos os problemas que descrevi.
Restava a medicina liberal, onde os médicos tinham verdadeira autonomia e podiam prestar serviços personalizados. A medicina liberal, porém, que já tinha dificuldade em competir com os grupos empresariais, levou um golpe de misericórdia com o Covid.
Para quem gosta de “timelines”, podem colocar 11 de Março de 2020 na Certidão de Óbito da medicina. É a data em que a OMS declarou a eclosão das infeções por SARS-CoV-2 como PANDEMIA.
Por razões incompreensíveis, os governos dos países Ocidentais decidiram encerrar os consultórios médicos ao mesmo tempo que monopolizaram e centralizaram o atendimento aos doentes com Covid.
Em Portugal, no SNS, quem testasse positivo entrava em contacto com a Saúde 24, que lhe aplicava o algoritmo: ficava em casa a paracetamol até o seu estado se agravar, situação em que entravam então as ambulâncias com transporte para os “covidários”.
Foi aplicada uma fórmula única, contrária à Legis Artis e que acabou por agravar bastante toda a situação epidemiológica. Em simultâneo, os médicos que discordaram foram cancelados e muitos tiveram as suas cédulas profissionais suspensas ou anuladas.
Os médicos tradicionais, claro está, nunca “abandonariam os doentes à sua sorte”, acompanhariam todos os casos. Com medidas de suporte e de conforto, com o recurso a medicações alternativas e até suplementos vitamínicos (as vitaminas C e D são úteis nestes casos). Por outro lado, tentariam controlar as doenças concomitantes, que têm tendência a desequilibrar e a agravar o prognóstico da Covid.
Eu tive Covid em Setembro de 2020 e pude beneficiar de todas as medidas de que falei, mas pela primeira vez na história da medicina não pude passar aos meus doentes o benefício do meu conhecimento e experiência.
Igualmente, os médicos analisariam caso a caso a questão das vacinas. Eu, por exemplo, nunca teria recomendado a vacinação de crianças e de grávidas. Os governos, porém, abandonaram a medicina tradicional e aplicaram fórmulas gerais que, até recentemente, apena se usavam em veterinária.
Os médicos da medicina casuística tradicional, já em número reduzido pelo contexto em que exerciam, foram assim definitivamente enterrados e com eles a Medicina. Eis a razão para o título deste desabafo – O FIM da MEDICINA.
Passaram-se para as populações ideias absolutamente falsas, como a de que a medicina é uma ciência e de que há fórmulas mágicas que se podem aplicar a todos. Para os néscios, os médicos tornaram-se desnecessários, substituídos por matemáticos, biólogos e até políticos.
Os famosos 1%, de milionários e bilionários, continuarão a ter os seus médicos tradicionais, mas não me parece que essa medicina da alta roda seja um modelo para uma das mais antigas profissões do mundo.
Reinaldo Ferreira (1922-1959), no seu poema “Timbre” já nos tinha alertado para os perigos da despersonalização. A estrofe final diz tudo:
Somos do tempo de viver aos molhos
Para morrer sozinhos.
Haja Saúde!
Joaquim Sá Couto
1) Couto, J. S.: Project management can help to reduce costs and improve quality in health care services; Journal of Evaluation in Clinical Practice (2006)
2) Kaplan, R. D.: The Tragic Mind; Yale University Press (January 17, 2023)
Sem comentários:
Enviar um comentário