(Continuação daqui)
130. Justiça é poder
Aquela frase que é atribuída ao juiz Marcolino, em pleno Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual lá na terra dele, gajo é sinónimo de corno, revela muito acerca do estado em que se encontra a justiça e a concepção que o juiz Marcolino - hoje, ele próprio juiz do Supremo -, tem da justiça.
"No princípio era o verbo...", é assim que se inicia o Evangelho segundo S. João.
O teólogo Joseph Ratzinger, mais tarde Papa Bento XVI, dedicou a maior parte da sua obra teológica a estudar a relação entre a fé e a razão. Para ele, o cristianismo é a religião da razão, e a oposição entre fé e razão é uma oposição falaciosa. Não existe oposição mas complementaridade, a fé é o limite da razão, e a extensão da razão. A fé é, ela própria, racional. Um homem extraordinariamente racional acaba inevitavelmente a ser um homem de fé.
Ao percorrer este caminho, Ratzinger deteve-se com particular cuidado a analisar o versículo "No princípio era o verbo..." e, em particular, o significado de "verbo", uma palavra de origem latina e que significa precisamente "palavra". O ponto enfatizado por Ratzinger, é que esta palavra não é uma palavra qualquer, uma palavra ôca, uma palavra fútil, aquela palavra que vem à cabeça de um qualquer matarruano.
Não. O verbo, a palavra de que fala Deus, é a palavra racional, a palavra de quem afirma que tudo tem uma causa e que, em última instância, a causa de tudo é o póprio Deus. É nesta interpretação do primeiro versículo do Evangelho de S. João que Ratzinger funda muito da sua tese de que o cristianismo é uma religião da razão e que a razão, quando levada ao limite, acaba invariavelmente por desaguar na fé.
Na verdade, a julgar pelos seus resultados - na ciência, na técnica, nas instituições - não existe, na história da humanidade, cultura mais racional do que aquela que é fundada no cristianismo. A própria democracia que, embora de origem grega, atingiu o seu auge no espaço da civilização cristã, está fundada no debate racional, na ideia de que existe um espaço próprio inerente a cada cidadão, que é um espaço da sua liberdade e que esse espaço é sagrado e inviolável.
Todo o debate democrático, porém, está fundado na palavra e num significado razoavelmente firme que é atribuído a cada palavra. Foi George Orwell que descreveu com mestria o estado totalitário em que uma sociedade invariavelmente desabaria quando se alterasse o significado às palavras.
Permanecem lendárias as inscrições que figuravam no frontispício do Ministério da Verdade daquele país imaginado por Orwell, a Oceania:
Guerra é paz
Liberdade é escravidão
Ignorância é sabedoria
Quando o significado das palavras é alterado desta maneira, torna-se impossível o diálogo racional, torna-se impossível a ciência, torna-se impossível o funcionamento das instituições democráticas e a democracia, torna-se impossível a verdade, torna-se impossível a justiça que passa a ser injustiça, torna-se impossível o próprio amor, que passa a ser ódio.
Numa sociedade assim, donde desapareceu o verbo, no sentido da palavra racional de que falava Ratzinger, como é que são as relações entre as pessoas? São relações de poder, manda quem pode e obedece quem deve. A sociedade seria toda como lá em Bragança, onde o juiz Marcolino é um cacique.
Em certo momento, uma das suas vítimas, na altura sócio como ele no aeroclube da cidade, queixou-se assim, em público, e referindo-se ao juiz: "Estes estatutos foram elaborados por um ditador, que se queria perpetuar no poder" (cf. aqui). O ênfase é na palavra poder. Escusado será dizer que este homem apanhou imediatamente com um processo por difamação, acompanhado de um sólido pedido de indemnização, porque não é impunemente que se chama ditador, em público, a um tiranete do calibre do juiz Marcolino.
É esta cultura que o juiz Marcolino transporta agora de Bragança para o Supremo Tribunal da Justiça em Lisboa, uma cultura em que a justiça passa a estar baseada, não na razão, mas no poder, onde vence sempre o mais forte e o mais fraco é esmagado. É uma justiça em que não há justiça nenhuma.
Não está excluído que, um dia destes, no frontispício do belo edifício onde está instalado o Supremo Tribunal de Justiça no Terreiro Paço apareçam inscritas as insígnias:
Gajo é corno
Tribunal é casa de alterne
Justiça é poder
(Continua acolá)
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