04 agosto 2022

tudo legal

A Comissão Independente (CI) que investiga os abusos sexuais sobre crianças cometidos na Igreja Católica em Portugal só reporta no final do ano. Mas as suas conclusões serão idênticas às do  relatório da CIASE (cf. aqui) e outros documentos - como o livro citado em baixo (cf. aqui) ou o relatório da consultora britânica GCPS sobre os Focolares (cf. aqui) -  que nos últimos anos abalaram a Igreja Católica em França.

É esse o caso, em particular, da cultura de ocultação ou de encobrimento - a mecânica do silêncio.

Bastaram quatro meses de trabalho à CI para em Abril passado, numa conferència de imprensa, o seu presidente, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, admitir, sem surpresa, que essa cultura também existe na Igreja portuguesa:

"Por outro lado, Pedro Strecht reconheceu que já foi possível identificar situações de ocultação ou encobrimento, incluindo por parte de bispos que continuam no activo" (cf. aqui, ênfase meu).

Por outras palavras, a alta hierarquia católica, que é constituída por todos os bispos portugueses reunidos na Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) tem conhecimento de abusos sexuais de crianças no seio da Igreja e encobre-os, como foi o caso daquele que recentemente veio a público envolvendo o bispo Manuel Clemente.

Aquilo que é inovador no caso português, é que a CEP tenha na sua estrutura, e dependendo hierarquicamente dos bispos, um juiz desembargador de um alto tribunal português (cf. aqui):


"Outros serviços nacionais criados pela CEP e acompanhados pela Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana:

  • Comissão Nacional Justiça e Paz
    Presidente: Dr. Pedro Vaz Patto
    Assistente: P. José Manuel Pereira de Almeida
    Quinta do Bom Pastor
    Estrada da Buraca, 8-12
    1549-025 LISBOA"

Quer dizer, na qualidade de membro da CEP, o juiz está, ele próprio, sob suspeita de encobrir crimes de abuso sexual de crianças. Não surpreende, por isso, que logo que vieram a público as alegações de encobrimento por parte do bispo Manuel Clemente, o juiz tenha aparecido imediatamente na comunicação social a defender o bispo (cf. aqui). 

Fica apenas a dúvida se o fez de livre vontade, a pedido dos bispos ou se foi mandado por eles. Esta é uma dúvida fatal para a independência e imparcialidade de um juiz de um alto tribunal do país.

Aquilo que também não é surpreendente é que o juiz, além de absolver o bispo Manuel Clemente, tenha aproveitado a oportunidade para se absolver a si próprio no caso de um dia vir a ser acusado de encobrir crimes de pedofilia no seio da Igreja. (Existem poucas situações tão interessantes na justiça como ver um juiz a julgar-se preventivamente a si próprio, ainda por cima em público)

Para absolver o bispo Manuel Clemente, o juiz diz que não há lei que obrigue uma pessoa em Portugal a denunciar crimes. E depois aproveita a oportunidade para dizer que existe uma excepção, que é o caso dos funcionários públicos no exercício das suas funções. Estão neste caso os juízes.

Um juiz que tenha conhecimento de um crime durante um processo judicial é obrigado a reportá-lo às autoridades de investigação criminal. Mas já não tem nenhuma obrigação de o fazer se tiver conhecimento do crime numa conversa com um bispo, ao ouvir na sacristia a queixa dos pais de uma criança abusada, durante uma reunião na sede nacional dos Focolares, ou durante uma Mariápolis (que era onde o conhecido perpetrador francês JMM frequentemente abusava as crianças).

Aí está tudo legal.

Sem comentários: