(Continuação daqui)
X. Um pirata-bom
É altura de ir de volta ao trinta e um para explicar por que é que se trata de um acórdão-pirata. O acórdão 31/2020 (cf. aqui) é aquele em que o Tribunal Constitucional, através da sua 2ª Secção, concede aos guardas da GNR o direito constitucional ao recurso, permitindo-lhes recorrer para o Supremo da condenação em multa (e indemnizações ao juiz Neto de Moura) que lhes foi imposta na Relação de Lisboa.
O processo continua, porém, ainda hoje retido no Tribunal Constitucional, à espera de ser apreciado pelo Plenário deste Tribunal - uma situação que se mantém há quase ano e meio.
O carácter pirata deste acórdão não se refere ao facto de ele não ter cumprido alguma das formalidades exigidas para sua aprovação. Refere-se, antes, ao facto de se tratar de um acto de pirataria judicial perpretado pelo então presidente do Tribunal, Professor Costa Andrade, que desempenha em todo o processo o papel do "pirata-bom".
Acerca da figura do "pirata-bom", uma explicação prévia é necessária. Desde há muitos anos que considero, embora sendo economista, que o principal problema institucional de Portugal é a justiça, e que os principais problemas económicos de Portugal se resolvem quando o problema da justiça for resolvido. Não é possível, no país, um jogo económico moderno, dinâmico, próspero e justo, quando o árbitro - que é o sistema de justiça - é medieval, lento, retrógrado e corrupto.
A justiça é o principal tema do meu livro "F. - Portugal é uma figura de mulher" (cf. aqui), publicado em 2014, e que teve origem numa conversa com a minha primeira neta, cuja inicial (F.) lhe dá o título.
Certa manhã, eu caminhava com ela na baía de S. Martinho do Porto, quando, de súbito, ela me perguntou, na inocência dos seus 3 anos:
-Avô... há piratas?
A minha primeira reacção foi seca:
-Há...
Só depois compreendi a apreensão que ia no espírito dela:
-E os piratas são maus?
Procurei tranquilizá-la:
-Há piratas maus... mas também há piratas bons...
Ela, com os seus grandes olhos, olhava agora para mim à espera de mais:
-Por exemplo, o pirata de S. Martinho é um pirata bom... há muito tempo que é meu amigo...
A história estava a pegar e eu continuei. Apontei ao longe para o farol que se ergue no morro junto ao mar e disse:
-Olha... aquela é a casa do pirata...
Fez-se um silêncio e, logo depois, fui surpreendido com um pedido:
-Podemos ir lá vê-lo?
Apesar, na altura, da minha inexperiência de avô, consegui sair da situação:
-Agora não porque ele está a dormir... Ele vai de noite ao mar apanhar peixe para os filhos e dorme de dia ... Mas qualquer dia vamos lá para o conheceres e brincares com os filhos dele...
Ela aceitou a resposta. O objectivo estava conseguido. Quem tinha começado a conversa com medo dos piratas estava agora disponível para conhecer o Pirata de S. Martinho e brincar com os filhos dele.
Parecia claro desde o acórdão 595/2018 de 13 de Novembro que o Professor Costa Andrade era o único "juiz" do Tribunal Constitucional a considerar que a Lei 20/2013 (que veio dar nova redação ao artigo 400º, nº 1, alínea e) do Código do Processo Penal) era inconstitucional para todas as penas (incluindo as de multa) e não apenas para penas de prisão. E isto era assim porque o direito ao recurso previsto no artº 32º, nº 1, da Constituição também não discrimina segundo a natureza das penas.
Além disso, tinha-lhe agora caído nas mãos o recurso dos guardas da GNR, um caso que estava a agitar a opinião pública, o governo e o meio judicial, e era imperioso resolver o problema, permitindo aos guardas o recurso para o Supremo onde - é praticamente certo -, eles seriam absolvidos.
Mas como resolver este problema, se ninguém mais no Tribunal Constitucional, para além dele próprio, era adepto da extensão da declaração de inconstitucionalidade da Lei 20/2013 às penas de multa e outras não privativas da liberdade?
Terá começado aqui o acto de pirataria judicial engendrado pelo Professor Costa Andrade. Na qualidade de presidente do Tribunal Constitucional, ele presidia também por inerência à 1ª e à 2ª secções do Tribunal, pelo que começou por chamar o processo a uma das secções presididas por si (muito provavelmente violando o princípio do juiz natural, uma violação que, como se sabe agora, é prática corrente nos tribunais portugueses).
E decidiu levar o processo para a 2ª Secção, e não para a 1ª, por uma razão bem forte. É que na 2ª Secção estava de saída uma juíza que terminava o mandato e que era desfavorável ao propósito do Professor Costa Andrade, e iria ser nomeada uma nova juíza em sua substituição.
Ora, a nomeação, feita pelo Parlamento, viria a recair sobre uma jovem jurista de 39 anos que assim se via guindada, num abrir e fechar de olhos, ao mais alto posto da judicatura, sem nunca ter feito um julgamento na vida, talvez nem mesmo a filhos indisciplinados.
Esta jovem jurista era filha de um conhecido professor de Coimbra, militante do PS, e colega do Professor Costa Andrade na Faculdade de Direito. Esta jovem jurista terá sido mesmo aluna do Professor Costa Andrade em Coimbra. Esta jovem jurista tinha uma última peculiaridade - era assessora da presidência do Tribunal Constitucional, isto é, do próprio Professor Costa Andrade. Chamava-se Mariana Canotilho (cf. aqui)
Que felicidade, estava conseguido o mais difícil. O Professor Costa Andrade terá então combinado com a sua ex-assessora o teor do acórdão, nomeou-a de seguida como relatora, sabendo ambos que os outros dois juízes da 2ª Secção iriam votar contra. Um até estava ausente e, provavelmente, tudo foi feito aproveitando a sua ausência. O resultado seria um empate 2-2, mas isso não era problema. O voto de qualidade do presidente resolveria o resto. E foi o que aconteceu.
Através deste acto de pirataria, o Professor Costa Andrade conseguiu um duplo objectivo, a saber, primeiro, que se fizesse justiça, e, segundo, acalmar, ao menos temporariamente, a ira dos comandantes da GNR e das outras forças de segurança para tranquilidade do governo e do próprio sistema judicial.
O Professor Costa Andrade agiu nesta história como um verdadeiro pirata-bom.
Ficava apenas um problema por resolver. Como o acórdão 31/2020 contrariava a jurisprudência contida no acórdão 595/2018, a Lei do Tribunal Constitucional manda que ele tem de ser ratificado pelo Plenário.
Mas como, se todos os "juízes", com excepção dos dois que o subscreveram - Mariana Canotilho e o próprio Costa Andrade - são contra ele?
Este é um problema que o Professor Costa Andrade nunca conseguiu resolver até abandonar o Tribunal Constitucional em Fevereiro deste ano.
E que continua por resolver.
(Continua)
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