20 abril 2021

O Grande Mal (II)

 (Continuação daqui)


II. Verborreia


A doença é verborreia, "uma necessidade excessiva de falar, comum em certos doentes mentais" (cf. aqui), às vezes chamada diarreia mental.

Em 2016, o ex-deputado do PS, Cláudio Monteiro, foi nomeado juiz do Tribunal Constitucional. As nomeações para o TC são sempre feitas por entendimento entre o PS e o PSD, os dois únicos partidos que, desde há muito, perfazem uma maioria qualificada no Parlamento.

Cláudio Monteiro assentou praça em general, recebendo de imediato a categoria, o vencimento e as honrarias de juiz conselheiro, que é categoria mais alta da judicatura, própria dos juízes do Supremo, e onde os verdadeiros juízes chegam depois de uma carreira de 30 ou 40 anos nos tribunais.

Entrar num edifício pelo telhado, sem ter de subir as escadas, deve dar uma sensação deslumbrante e, em breve, Cláudio Monteiro, o ex-deputado do PS, estava a redigir acórdãos, que é uma coisa que ele nunca tinha feito na vida.

Mas não acórdãos quaisquer. Possuindo a categoria de juiz conselheiro, igual à categoria dos juízes do Supremo, ele devia sentir que tratava juízes do Supremo por tu, e em breve estava a redigir acórdãos que revogavam decisões do Supremo, isto é, de verdadeiros juízes conselheiros, e não de falsos juízes conselheiros como ele. Aconteceu assim com o acórdão 90/2019 (cf. aqui).

Anos e anos a apreciar casos judiciais envolvendo a contagem dos prazos de prescrição, os juízes do Supremo há muito tinham chegado a um consenso que representava a interpretação corrente da lei ou jurisprudência sobre a matéria - o prazo conta-se a partir da consumação do crime o que, no caso de corrupção, é o momento do recebimento da vantagem pelo corruptor passivo.

Mas, agora, do alto da sua cadeira de "juiz conselheiro" do Tribunal Constitucional, o "juiz" Cláudio Monteiro iria revolucionar a interpretação da lei e a próprio justiça - o prazo de prescrição em crimes de corrupção iria começar a contar-se a partir da promessa da vantagem. A sua colega Fátima Mata Mouros, esta sim, uma verdadeira juíza - embora não uma juíza conselheira -, ainda o procurou parar com o seu voto de vencida.

Fátima Mata Mouros argumentou que o acórdão desprestigiava a justiça porque revogava a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. A partir de agora, e com acórdãos como este, ninguém iria respeitar as decisões do Supremo. Deixava de se saber o que era justiça e o que não era justiça, desaparecia a certeza sobre as regras do jogo em sociedade. 

Mais ainda, o Tribunal Constitucional estava a usurpar funções que não lhe pertenciam - as da interpretação de leis ordinárias. O Supremo Tribunal de Justiça deixava de ser o supremo tribunal do país, sendo substituído pelo Tribunal Constitucional que se tornava uma "quarta instância" judicial para onde os advogados passariam a recorrer para evitar ou diferir o cumprimento de penas pelos seus clientes que tivessem sido condenados pelos tribunais comuns.

Nada feito. Apoiado pelo seu colega de partido João Caupers, que também não é juiz, mas é hoje o presidente do Tribunal Constitucional, e por José Teles Pereira que, sendo juiz, não é juiz conselheiro, o acórdão foi aprovado por maioria da 1ª secção do Tribunal Constitucional. De uma penada, dois falsos juízes e um juiz desembargador revogavam a jurisprudência estabelecida pelo Supremo Tribunal de Justiça e por verdadeiros juízes conselheiros - a elite judicial do país.

E o acórdão?

O acórdão é pura verborreia. Não existe ali um único argumento racional que permita concluir que a contagem do prazo de prescrição do crime de corrupção a partir do recebimento da vantagem viola o artº 29º da Constituição. Não existe ali nem em lado nenhum, porque não viola coisa nenhuma da Constituição.

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