19 abril 2021

O Grande Mal (I)


I. Doentes mentais


O acórdão 90/2019 do Tribunal Constitucional (cf. aqui) merece mais atenção do que aquela que lhe dediquei no post anterior porque põe em evidência um dos grandes males do nosso sistema de justiça, senão mesmo O Grande Mal.

Antes de identificar esse grande mal, convém reiterar alguns pontos relativos ao acórdão.

Primeiro, trata-se do acórdão invocado como jurisprudência pelo juiz Ivo Rosa para considerar prescritos os crimes de corrupção atribuídos a José Sócrates. É importante frisar, porém, que mesmo que os crimes não tivessem prescrito, o juiz Ivo Rosa nunca pronunciaria José Sócrates pelos três crimes de corrupção que o Ministério Público lhe imputou, mas tão somente pelo crime de "corrupção sem demonstração de acto concreto" que ele próprio lhe atribuiu.

Segundo, o acórdão anula a jurisprudência estabelecida pelo Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual o prazo de prescrição do crime de corrupção começa a contar no momento em que o corruptor passivo recebe um benefício, e substitui essa jurisprudência por outra que conta o prazo de prescrição a partir do momento em que o corruptor activo promete o benefício ao corruptor passivo.

Terceiro, em termos jurídicos, o acórdão procura dar resposta à questão: 

"É ou não inconstitucional (por violar o artº 29º, nºs. 1 e 3 da Constituição) o artigo 119º, nº 1, do Código Penal na interpretação que lhe é dada pelo STJ, relativa ao início da contagem do prazo de prescrição dos crimes de corrupção (referida em cima)?

Quarto, para tornar a questão inteiramente clara, reproduzo a seguir o artº 119º, nº 1 do Código Penal:

"1 - O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado" (cf. aqui)

A interpretação que vinha sendo dada pelo STJ, tratando-se de crimes de corrupção a que se refere o artigo 374º do Código Penal (cf. aqui), era a interpretação óbvia e razoável e que todo o cidadão pode entender. 

Por exemplo, um funcionário público combina fazer uns favores a uma empresa em 2012; fá-los até 2016, altura em que, estando "o trabalho completo", recebe luvas de um certo montante.

O STJ considera que o prazo de prescrição é contado a partir de 2016, quando a corrupção é consumada porque, até aí, sem haver recebimento de um benefício, não há maneira de provar que houve corrupção.

Quinto, é numa situação assim, em que alguém foi condenado por corrupção à luz desta jurisprudência do STJ, que um recurso chega ao Tribunal Constitucional contestando a jurisprudência, e o TC decide analisar a questão à luz  da Constituição, cujo artº 29º diz assim, nos nºs 1 e 3: 

"1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.

3. Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior" (cf. aqui).


Sexto, meses depois, no acórdão 90/2019, tendo como relator o "juiz conselheiro" Cláudio Monteiro, o Tribunal Constitucional responde que Sim, que o artº 119º do Código Penal, na interpretação que lhe vinha sendo dada pelo STJ, viola a Constituição no seu artº 29º, nºs 1 e 3. 

Olhando para uma e para outra destas leis, não se vê como, não se vê que contradição existe entre elas, não se vê mesmo qualquer relação entre elas, seja de afinidade ou de antagonismo, mas o Tribunal Constitucional, depois de um penoso trabalho de argumentação, viu aquilo que mais ninguém vê, e concluiu que Sim, que a primeira viola a segunda.

Por isso, eu estou agora em condições de revelar, e de provar em seguida, qual é o grande mal que este acórdão do Tribunal Constitucional exibe à luz do dia e que é um factor de muito peso na má qualidade do nosso sistema de justiça, que vários acontecimentos recentes têm vindo a mostrar ao público.

O grande mal é que um grande número dos juristas que fazem o nosso sistema de justiça - e ele é feito exclusivamente por juristas - são doentes mentais.


(Continua)

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