Que sejam populares a fazê-lo, incluindo jornalistas, ainda se admite. Agora que sejam juristas, incluindo fiscalistas, é que já não tem desculpa nenhuma (cf. aqui e aqui).
Refiro-me à contestação que está a ser feita à decisão instrutória do juiz Ivo Rosa que, reconhecendo embora que José Sócrates poderá ter recebido 1,7 milhões de euros de forma ilícita, não o pronunciou por fraude fiscal.
O argumento dos críticos é o de que a lei do IRS obriga à declaração de rendimentos obtidos de forma ilícita, e a própria declaração de IRS contém um campo reservado a esse fim.
Por outras palavras, ao final do ano, um carteirista é obrigado a declarar ao fisco quanto ganhou com a sua actividade, e a pagar impostos sobre esse rendimento, o mesmo sucedendo com um assaltante de caixas multibanco, um proxeneta ou um narcotraficante.
Seria interessante saber, entre os milhões de contribuintes portugueses, quantos preenchem este campo da sua declaração de IRS. Mas fica sempre o argumento de que lei é lei e tem de ser cumprida.
Excepto se a lei colidir com uma lei de ordem superior que a anule. E esta lei fiscal colide de frente com uma lei de ordem superior que a anula - a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) que tutela o direito à não-auto-incriminação.
(Sobre este direito, escrevi noutra altura neste blogue, a propósito de outro assunto, cf. aqui: um, dois, três)
A lei que obriga os portugueses a declararem rendimentos de origem ilícita para efeitos de IRS não é só uma grande manifestação da irracionalidade dos juristas que fazem as leis, a qual explica em grande parte o estado caótico e corrupto em que se encontra a justiça portuguesa. Esperar que um burlão declare quanto ganhou em burlas, um ladrão em roubos, um proxeneta a explorar prostitutas, é obra - na realidade, é esperar demais.
Trata-se também de uma manifestação da tradição inquisitorial portuguesa em que o Estado se sente no direito de devassar a vida de todos os cidadãos ao mais ínfimo detalhe e pretende saber, através de confissão, quem são os narcotraficantes, os proxenetas e os carteiristas do país. Ora, o juiz Ivo Rosa é um grande defensor dos direitos humanos fundamentais.
O direito à não-auto-incriminação, tutelado pela CEDH e pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cf. aqui, pp. 40 e segs.), e que o juiz Ivo Rosa menciona explicitamente na sua decisão instrutória, diz que ninguém pode ser obrigado a auto-incriminar-se, que é precisamente o que uma pessoa faria se declarasse rendimentos de origem ilícita na sua declaração de IRS. Neste ponto, a lei fiscal portuguesa nunca passaria no Tribunal de Estrasburgo, a cujas decisões Portugal está vinculado.
É o juiz que tem razão, e não os seus críticos, ao não pronunciar José Sócrates por fraude fiscal.
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