01 março 2021

Um grande bando de ladrões (7)

 (Continuação daqui)

"Um Estado que não se regesse
 segundo a justiça, reduzir-se-ia
 a um grande bando de ladrões."
S. Agostinho


VII. Roubam-se uns aos outros

Existe agora um novo alvoroço no Ministério Público, e não é sobre o mau funcionamento da justiça porque, sobre esta matéria, o Ministério Público nunca se alvoroça. Pelo contrário, ainda há um ano, na abertura do ano judicial - essa cerimónia medieval - a ministra da Justiça, que é também magistrada do Ministério Público, considerava que temos os melhores magistrados do mundo.

O Ministério Público só se alvoroça por questões corporativas, reclamando ora por aumentos salariais iguais aos dos juízes, ora por mais autonomia, ora, desta vez, por falta de imparcialidade nos concursos de promoção na carreira. 

Um grupo de magistrados do MP protesta, agora, contra a partidarização dos concursos para procuradores-coordenadores que favorecem os candidatos afectos ao PS (cf. aqui), algo que já tinha também acontecido recentemente com a nomeação do procurador europeu.

A tese de S. Agostinho de que um Estado que não se reja por princípios de justiça acaba convertido num grande bando de ladrões foi retomada várias vezes pelo cardeal Joseph Ratzinger (hoje, Papa Emérito Bento XVI) na sua obra teológica. 

Ratzinger preferiu a expressão "associação de malfeitores" à expressão original "um grande bando de ladrões" de S. Agostinho. E fez bem porque, por vezes, não se trata de o Estado ao qual falhou a justiça roubar terceiros - normalmente os seus próprios cidadãos -, mas de lhes fazer mal pela simples lógica de fazer mal, como acontece com qualquer bando de malfeitores.

Porém, a principal contribuição do Papa à tese agostiniana foi a de responder à questão "Em que momento é  que o Estado deixa de ser um Estado para se tornar uma associação de malfeitores?". Ou, colocada de forma equivalente: "Qual é o critério definidor do colapso da justiça que converte o Estado numa associação de malfeitores?".

É assim que o próprio Joseph Ratzinger dá a resposta:

"O que constitui a formação criminosa organizada só tem que ver, essencialmente, com critérios de juízo pragmático - e, portanto, necessariamente parciais, dependentes de um ou outro grupo. Qualquer coisa de efectivamente diverso nelas (...) apenas se dá quando entra em jogo uma justiça que não se mede pelos interesses parciais, mas sim por um critério de valoração universal" (cf. aqui, p. 98, ênfases meus)

Quer dizer, a justiça entra em colapso quando perde o atributo da imparcialidade, quando deixa de obedecer a um critério de "valoração universal", e passa a obedecer a critérios parciais "dependentes de um ou outro grupo" (sic). É neste momento, em que a justiça deixa de ser imparcial, que o Estado se converte num grande bando de ladrões.

Aquilo que o grupo de  magistrados do MP  se veio agora queixar em público é que um outro grupo de magistrados afectos ao PS lhes roubou os lugares de procuradores-coordenadores que eles sentiam ser seus. Não é difícil presumir que o grupo queixoso - suportado pela direcção do sindicato (cf. aqui) - é igualmente parcial ou partidarizado, e afecto ao PSD.

Que a justiça em Portugal está controlada pelo PS e pelo PSD - o chamado "sistema" - não é novidade nenhuma, basta ver a composição do Tribunal Constitucional, o mais alto tribunal do país (cf. aqui). Que o Ministério Público está tão partidarizado entre o PS e o PSD como o Tribunal Constitucional é igualmente conhecido. Que a justiça em Portugal, há muito, se governa por critérios parciais "dependentes de um ou outro grupo"  não é, por isso, novidade nenhuma. 

Em consequência, não pode ser novidade  que o Estado português há muito se tenha transformado num "grande bando de ladrões" ou, nas palavras do teólogo Joseph Ratzinger, numa "associação de malfeitores".

Aquilo que é genuína novidade é que as duas facções desse grande bando de ladrões já não se entendem mais na repartição dos benefícios e que uma vem queixar-se publicamente da outra. É um sinal de que a associação de malfeitores está a entrar em colapso.

Não devemos lamentar a sorte de uma nem mostrar regozijo pela outra. Hoje é o PS que rouba ao PSD lugares de relevo na hierarquia do Ministério Público. No passado, quando o PSD esteve no poder, foi ao contrário. Não é segredo que, quando não há mais ninguém por perto para roubar, os ladrões roubam-se uns aos outros.


(Continua) 

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