O caso que na semana passada veio a público é mais um escândalo da justiça - um juiz desembargador está ser julgado por difamação de uma juíza de direito (cf. aqui).
A carreira de juiz contém três degraus - juiz de direito (tribunais de primeira instância), juiz-desembargador (tribunais da Relação) e juiz conselheiro (Supremo Tribunal de Justiça).
Por virtude da tradição anti-democrática e autoritária da cultura portuguesa, os juízes em Portugal sempre se viram mais como uma burocracia ao serviço do poder executivo, como é próprio de um regime autoritário, do que como um poder autónomo e independente dos outros poderes, como é próprio de uma democracia.
Segue-se que o principal critério de promoção dos juízes é a antiguidade, como acontece em todas as burocracias.
É a esta luz corporativa que o escândalo deve ser visto.
É uma juíza no patamar mais baixo da judicatura (uma juíza de direito, Paula Carvalho Sá), que acusa um juiz-desembargador, presidente de uma secção criminal do Tribunal da Relação do Porto, com muitos anos na função e 65 anos de idade (Francisco Marcolino).
Este juiz está, portanto, na calha para ser promovido ao lugar mais alto da magistratura, o de juiz conselheiro, e aceder ao Supremo Tribunal de Justiça.
Como o réu é juiz de um tribunal superior - o Tribunal da Relação do Porto -, a lei manda que ele seja julgado por juízes do Supremo Tribunal de Justiça. Segundo se deduz das notícias, o réu requereu a abertura de instrução, mas o juiz de instrução validou a acusação do Ministério Público que terá sido deduzida contra o juiz Marcolino, no seguimento da queixa apresentada pela juíza Paula Sá, e mandou o caso para julgamento.
O julgamento está agora a decorrer perante um colectivo de juízes do Supremo Tribunal de Justiça, a que preside o juiz conselheiro Pires da Graça.
A primeira questão a responder é esta: Mas haverá aqui algum crime?
Não, não há crime nenhum, chamar "mentirosa e desonesta" a uma pessoa, segundo a jurisprudência do TEDH - que é o tribunal mais elevado para julgar processos por difamação - não é crime nenhum. O próprio Supremo nos últimos anos tem seguido estritamente a jurisprudência do TEDH e dado indicações fortes aos tribunais inferiores para que façam o mesmo.
Portanto, o Supremo vai ter de absolver o juiz Marcolino, sob pena de se descredibilizar a si próprio e ver o juiz Marcolino recorrer para o TEDH e este dar-lhe razão.
Este é o aspecto mais insólito deste caso. Uma juíza de direito que se queixa de um juiz desembargador, o Ministério Público que acusa, três juízes do Supremo que julgam, e não há crime nenhum, só espectáculo.
O outro aspecto insólito é que o réu é um juiz, e não um juiz qualquer, mas um juiz desembargador, e a queixosa também é juiz. O nosso sistema de justiça já chegou ao ponto - e aqui a obra é do Ministério Público, que é o acusador oficial - em que os juízes se acusam uns aos outros, mesmo quando não há crime nenhum.
Mas não apenas isto. A queixosa - juíza de direito, Paula Sá - também não acredita na imparcialidade do presidente do colectivo de juízes do Supremo, juiz-conselheiro Pires da Graça, e impugna a sua presidência do colectivo (cf. aqui)
Quer dizer, não apenas a juíza de direito Paula Sá considera que o juiz desembargador Marcolino é um criminoso (opinião partilhada pelo magistrado do MP que produziu a acusação) como considera que o juiz conselheiro Pires da Graça não tem idoneidade para julgar o caso.
Este é o ponto a que chegou a justiça em Portugal. Se são os próprios juízes que se consideram assim uns aos outros, que confiança podem os cidadãos ter nos juízes?
Falta responder a uma pergunta: Se, por detrás deste espectáculo, não há crime nenhum, para quê tudo isto?
Trata-se de mera política corporativa, que os juízes já não conseguem conter dentro de portas e que extravasou cá para fora. A juíza Paula Sá está a vingar-se do juiz Marcolino que em tempos lhe prejudicou a carreira. E , ao julgar o caso, o Supremo dá um argumento ao Conselho Superior da Magistratura para não deixar promover o juiz Marcolino a juiz-conselheiro.
De facto, com o currículo que ele tem, seria um desprestígio para os juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça tê-lo como um dos seus pares.
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