05 dezembro 2020

É por vergonha

 Ambos os recursos versam sobre a mesma questão de direito - pedem a declaração de inconstitucionalidade do artº 400º, nº 1, alínea e) do Código do Processo Penal (na redação que foi introduzida pela Lei 20/2013), que diz assim:

"1. Não é admissível recurso:

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos" (cf. aqui).

Esta norma do CPP colide com o nº 1 do artº 32º da Constituição que consagra o direito ao recurso, dizendo assim:

"O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso" (cf. aqui).

Num caso, os recorrentes são quatro guardas da GNR num processo que os opõe ao juiz Neto de Moura e ao Ministério Público (cf. aqui). No outro, o recorrente sou eu num processo que me opõe ao eurodeputado do PSD, Paulo Rangel, e ao Ministério Público (cf. aqui).

Em ambos os casos, os recorrentes foram absolvidos em primeira instância, mas condenados na Relação a penas de multa, para além do pagamento de indemnizações. (No caso dos guardas da GNR, cf. aqui; no meu caso, cf. aqui).

O acórdão do Tribunal Constitucional (TC), relativo ao primeiro caso, é o nº 31/2020 de 16 de Janeiro (cf. aqui), e o acórdão relativo ao segundo caso é o nº 646/2020 de 16 de Novembro (indisponível na internet, cf. aqui).

A relatora do acórdão relativo ao caso Neto de Moura e MP vs. guardas da GNR é a juíza Mariana Canotilho, nomeada pelo PS para o TC. A relatora do acórdão relativo ao caso Paulo Rangel e MP vs. Pedro Arroja é a juíza Rangel de Mesquita, nomeada pelo PSD para o TC (cf. aqui).

As decisões dos dois acórdãos são as seguintes (ênfases meus).

Acórdão 31/2020 (Neto de Moura e MP vs. guardas da GNR):

"III. Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a)       Julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea e), ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que condenem os arguidos em pena de multa, ainda que as decisões recorridas da 1ª Instância sejam absolutórias, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

b)      Julgar procedente o recurso interposto e ordenar a reforma da decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade." (cf. aqui)



Agora, a decisão do Acórdão 646/20 (Paulo Rangel e MP vs. Pedro Arroja, cito a partir da versão em papel que me foi remetida)


"III - Decisão


14. Pelo exposto, acordam em indeferir  a presente reclamação, mantendo o decidido na Decisão Sumária nº 865/2019, quanto ao juízo de não inconstitucionalidade da norma do artigo 400º, nº 1, alínea e), do Código do Processo Penal, interpretado no sentido de que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição de primeira instância, condena o arguido em pena de multa."



Quer dizer, o artigo 400º, nº 1, alínea e) do CPP é inconstitucional para os guardas da GNR, mas não para mim.

Os guardas da GNR têm direito ao recurso previsto no artigo 32º, nº 1, da Constituição, mas eu não tenho.

Os guardas da GNR podem recorrer da sentença do Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, mas eu não posso.


Dir-se-ia que a decisão do acórdão 646/2020 foi um erro de jurisprudência.


Mas não foi. Com uma juíza chamada Rangel e nomeada pelo PSD não foi um mero erro de jurisprudência.


Foi corrupção. Pura corrupção.


É por vergonha - se é que ainda existe alguma no TC - que o acórdão 646/2020 não está publicado no seu site oficial (cf. aqui).




Adenda em 12/12/20: O acórdão 646/20 acabou por ser publicado no passado dia 9, vários dias depois de estarem publicados todos os acórdãos bem para além do 700/2020. Acredito que foi por pressão da comunicação social, à qual enviei este post. Estavam a ver se passavam.   

Sem comentários: