15 dezembro 2020

O direito ao recurso (III)

 (Continuação daqui)



III. À prisão?

Em 2011, um deputado da Madeira chamou nazi a um advogado que também era político. Sendo os juristas muito sensíveis à ofensa, o advogado, que também era político, pôs um processo-crime por difamação ao deputado madeirense.

Em primeira instância, o deputado foi absolvido, mas o advogado, que também era político, recorreu da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL).  Ora, como hoje se sabe, o TRL é especialista em inverter decisões de primeira instância em processos por difamação, e condenou o deputado madeirense.

Como o deputado era reincidente a ofender políticos, advogados e outras figuras públicas, o TRL não foi meigo para com ele. Condenou-o a um ano de prisão.

Ora, no estado em que se encontrava o direito ao recurso nessa altura (2018) em Portugal, o deputado tinha mesmo de ir para a prisão porque, por virtude da lei 20/2013, tendo ele sido condenado inovadoramente na Relação numa pena de prisão que não era superior a 5 anos, não tinha direito a recorrer para o Supremo.

Num acto de desespero, o advogado do deputado madeirense recorreu para o Tribunal Constitucional a pedir a declaração de inconstitucionalidade da lei 20/2013, como alguns dos seus colegas já tinham feito antes, sem sucesso.

E foi neste momento que o Tribunal Constitucional tremeu.

Um deputado ir para a prisão era um péssimo precedente. É certo que o deputado era da Madeira e, ainda por cima, de um pequeno partido. Mas se o exemplo pegasse, quem garantia que um dia esta mania de mandar deputados para a prisão não chegaria ao continente e aos grandes partidos, como o PS e o PSD, que dominavam o Tribunal Constitucional?

E nesse dia, com os deputados do PS e do PSD na prisão, quem é que iria nomear os boys para o Tribunal Constitucional - os presos?

E sendo os nomeados, eles próprios, frequentemente, ex-deputados do PS e do PSD, onde é que se iriam buscar juízes conselheiros para o Tribunal Constitucional - à prisão?

O problema que o Tribunal Constitucional tinha pela frente era, de facto, um problema muito sério porque estava em causa a sua própria sobrevivência.

Por isso, o Tribunal Constitucional decidiu dar um jeitinho.

Depois de cinco anos a dizer que a lei 20/2013 não era inconstitucional, o Tribunal Constitucional reuniu em Plenário no outono de 2018 e decidiu que, afinal, a lei 20/2013 era inconstitucional.

Daqui saiu o acórdão  595/2018 (cf. aqui).

Para dar um certo ar de seriedade à coisa, o Tribunal Constitucional nomeou como relatora do acórdão uma verdadeira juíza que, não sendo embora juíza-conselheira - excepto por empréstimo do título no Tribunal Constitucional - era, não obstante, juíza desembargadora no Tribunal da Relação de Évora. 

Não ficaria bem num caso destes que o relator fosse um daqueles juízes conselheiros do Tribunal Constitucional, que constituem a maioria, que não são juízes nenhuns, mas meros mandatários dos partidos.

O acórdão tinha uma particularidade. Ele devolvia o direito ao recurso a alguns portugueses a quem a lei 20/2013 o tinha tirado, mas não a todos. É que o acórdão considerava inconstitucional a lei 20/2013 mas somente quando estavam envolvidas penas de prisão, irrespectivamente da sua duração, mas continuava a considerar constitucional a lei 20/2013 se as penas fossem de multa ou outras penas não privativas de liberdade.

Quer dizer, pelo final de 2018, tinham direito constitucional ao recurso em Portugal todos os portugueses, incluindo aqueles que, tendo sido absolvidos em primeira instância, foram condenados inovadoramente na Relação a pena de prisão, qualquer que fosse a sua duração. Mas continuavam privados do direito constitucional ao recurso todos aqueles que, tendo sido absolvidos em primeira instância, foram inovadoramente condenados na Relação a pena de multa ou outra pena não privativa de liberdade.

Foi um grande progresso.

O deputado madeirense pôde, finalmente, recorrer para o Supremo, que o absolveu.

E os juízes do Tribunal Constitucional respiraram de alívio.   

(Continua)

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