(Continuação daqui)
II. De mansinho
Durante trinta e sete anos, desde 1976 até 2013 - a despeito do Tribunal Constitucional nos últimos trinta e um -, todos os portugueses, sem excepção, conseguiram usufruir livremente e sem qualquer restrição do direito ao recurso previsto no artº 32º da Constituição.
Porém, em Fevereiro de 2013 tudo se alterou quando foi publicada a Lei nº 20/2013 que, com o intuito de diminuir a carga de trabalho que impendia sobre o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), introduziu uma nova redacção no artº 400º, nº 1, alínea e) do Código do Processo Penal, que passou a dizer assim:
"1. Não é admissível recurso:
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos"
De acordo com esta lei, quem fosse absolvido em primeira instância, mas condenado na Relação a pena de prisão inferior ou igual a 5 anos, ou a pena de multa ou outra (v.g., trabalho comunitário) ficava privado do direito ao recurso previsto no artº 32º da Constituição, tornando a lei ostensivamente inconstitucional.
À distância de sete anos parece impossível como é que a Assembleia da República onde os juristas estão em maioria, e que dispõe, para além disso, de numerosos assessores jurídicos, faz uma lei obviamente inconstitucional. E como é que o Presidente da República, em cujo gabinete existem igualmente numerosos assessores jurídicos, promulga uma lei que é inconstitucional até aos olhos de um leigo.
A única razão plausível é que a inconstitucionalidade da lei era conhecida desde o início mas, ainda assim, era preciso fazê-la entrar em vigor sem qualquer ressalva que lhe retirasse a inconstitucionalidade.
Só assim seria possível continuar a dar trabalho aos numerosos juristas que existem no país - incluindo advogados, juízes e procuradores do MP - que agora teriam abundante matéria, à conta desta lei, para resolver os complexos problemas do conflito das leis e da sua inconstitucionalidade, e assim justificar aquilo que ganham.
A credibilidade desta explicação aumenta quando, em retrospectiva, se constata que o Tribunal Constitucional deixou que esta lei vigorasse no país durante cinco anos sem a declarar inconstitucional - pelo contrário, em várias ocasiões validando a sua constitucionalidade - e privando todos os cidadãos portugueses que se encontravam nas condições descritas do seu direito constitucional ao recurso.
Durante este período - que decorreu desde a publicação da lei em 2013 até 2018 - só tinham direito ao recurso para o STJ os cidadãos que, tendo sido absolvidos em primeira instância, tivessem sido condenados inovadoramente na Relação em penas de prisão superiores a 5 anos. Quanto àqueles que tivessem sido condenados inovadoramente na Relação em pena de prisão até cinco anos, ou em pena de multa ou outra (v.g. trabalho comunitário), a esses, deixava de lhes ser reconhecido o direito ao recurso.
O Tribunal Constitucional tinha começado a fazer o seu trabalho, diria Ludwig von Mises - privar os portugueses do direito constitucional ao recurso, começando por uma pequena minoria. De mansinho, que é como normalmente estas coisas começam.
Até que em 2018 ocorreu um acontecimento maior, uma espécie de bomba que fez estremecer o Tribunal Constitucional.
(Continua)
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