09 novembro 2020

Um juiz à solta (X)

 (Continuação daqui)



X.  Chapa 50 

O Código de Conduta dos juízes acende uma pequena luz que permite acalentar a esperança numa alteração da cultura prevalecente na judicatura portuguesa quando, a propósito do dever de Urbanidade dos juízes, escreve:

"2. Os magistrados judiciais respeitam o direito à crítica das suas decisões e contribuem para que, através dos órgãos competentes, as mesmas sejam esclarecidas e explicitadas, quando tal se justifique." (cf. aqui, Artº 7º, ênfase meu). 

Trata-se de uma versão soft da jurisprudência democrática do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que submete os juízes a uma crítica que pode ser tão ampla e contundente quanto aquela que se aplica aos políticos (cf. aqui). 

No centro dos casos de corrupção da justiça em Portugal estão frequentemente processos envolvendo dinheiro e os mais frequentes são os processos por difamação e ofensas pelas quais são pedidas, às vezes, avultadas indemnizações.

É através destes processos que os agentes da justiça - juízes, advogados, magistrados do MP - e os políticos - que são, na maioria, advogados - enriquecem ilegitimamente. Fazem-no aproveitando as ineficiências do sistema de justiça português que, em muitos aspectos, é ainda medieval, traficando influências na sua condição de insiders do sistema.

No centro do mais recente escândalo na justiça estão vários juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, entre eles, o juiz Rui Rangel e a sua mulher, a juíza Fátima Galante (cf. aqui). Já em 1998 dois advogados tinham denunciado a juíza Galante por corrupção, acusando-a de vender sentenças.

As leis sobre a difamação e a ofensa vigentes em Portugal são herdadas da Idade Média e de regimes políticos autoritários (v.g., monarquia absoluta, Estado Novo) e estão destinadas a proteger a corrupção entre os que têm poder e a penalizar quem os denuncia. Aquilo que aconteceu na altura com a juíza Fátima Galante - que vinte anos depois volta a ser acusada de corrupção - foi que, quem acabou  condenado não foi ela, mas os advogados que a denunciaram, os quais, juntamente com o jornal Independente,  foram obrigados a indemnizar em 50 mil euros a juíza Galante por difamação.   

O advogados recorreram para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que lhes deu razão e obrigou o Estado a ressarci-los do dinheiro que tinham pago à juíza Galante. No fim do processo a juíza Galante ficou com os 50 mil euros e quem acabou a suportá-los foram os contribuintes portugueses, que não tinham feito mal nenhum à juíza Galante (cf. aqui).

Este casal de juízes, aliás, parece ter uma certa propensão para enriquecer ilegitimamente através de processos por ofensas, e sempre pela Chapa 50, que é o valor que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) geralmente atribui à vida. 

Foi num destes processos por difamação contra jornalistas do Correio da Manhã, que o juiz Rangel foi apanhado a traficar a sentença com o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa (cf. aqui), a qual viria a fixar a indemnização em 50 mil euros (o juiz pedira 250 mil). Esta sentença seria posteriormente anulada pelo Supremo.

Um dos processos mais cruéis da série Chapa 50 foi o de um advogado condenado a indemnizar um juiz por difamação em 50 mil euros, dinheiro que o advogado não tinha mas teve que arranjar. O advogado recorreu para o TEDH mas viria a falecer entretanto - diz a família que amargurado com a injustiça. Tivesse ele vivido mais tempo e teria morrido reconfortado. O TEDH deu-lhe razão e obrigou o Estado português a indemnizar a família pelo valor pago ao juiz. No fim do processo, o juiz enriqueceu em 50 mil euros, e os contribuintes portugueses, que não tinham feito mal nenhum ao juiz, empobreceram pelo mesmo montante.

O caso mais paradigmático de todos envolve o ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), juiz-conselheiro Noronha do Nascimento e o jornalista José Manuel Fernandes, então director do Público. O jornalista foi obrigado a pagar 60 mil euros ao juiz por causa de um artigo de opinião, sendo que no processo foi também condenada a mulher do jornalista por beneficiar do salário do marido. O jornalista recorreu para o TEDH, que lhe deu razão, e o Estado foi obrigado a indemnizar o jornalista (cf. aqui).

O caso é paradigmático, não só por exceder a Chapa 50, que é o valor da vida para o STJ, mas também por se tratar de um juiz no vértice da judicatura - sendo presidente do STJ era também, por inerência, presidente do Conselho Superior da Magistratura, o órgão de governação dos juízes. O caso é ainda paradigmático pela desvalorização que o juiz Noronha do Nascimento fez da decisão do TEDH dizendo na altura aos jornalistas que o TEDH não faz jurisprudência em Portugal, algo que mais tarde viria a reiterar por escrito (cf. aqui).

A verdade é que o TEDH faz jurisprudência em Portugal e não é pouca. O Estado português - que é frequentemente um caloteiro para com os seus credores -  paga religiosa e atempadamente as multas e indemnizações em que é condenado pelo TEDH. É que o TEDH tem um grupo de trabalho que zela pelo cumprimento das suas sentenças nos Estados membros, sob pena de expulsão. No fim, o juiz Noronha do Nascimento ficou com os 60 mil euros que tinha recebido do jornalista e quem indemnizou o jornalista foram os contribuintes portugueses.

A maior parte dos países com uma longa tradição democrática há muito que não criminalizam a difamação, e o Conselho da Europa, que integra o TEDH, desde 2010 que apela a todos os Estados membros, como Portugal, para que façam o mesmo. Porém, compreende-se por que é que, quer os juízes quer os políticos, não mexem uma palha neste sentido.  É uma avenida aberta para o enriquecimento ilegítimo. 

Chegado a este ponto, e estando o juiz Pedro Vaz Patto envolvido em tantas actividades extra-judiciais que põem em causa a sua imparcialidade e a sua independência enquanto juiz, é caso para perguntar como é que ele decidirá  se lhe fôr parar às mãos um processo tipo Chapa 50 entre um bispo católico, de que ele é porta-voz, e um cidadão qualquer. Ou entre um dirigente dos Focolares, a seita religiosa à qual ele pertence, e um cidadão qualquer. Ou entre um político membro da Comissão de Honra da Associação "O Ninho" e um cidadão qualquer.

Presume-se que pede escusa do processo por estar comprometida a sua imparcialidade, seguindo à risca a prescrição do nº 2 do Artº 5º do Código de Conduta dos juízes, que diz assim: 

"2. Nas situações que possam suscitar dúvidas sobre a sua imparcialidade, os magistrados judiciais acionam os mecanismos legalmente previstos". (cf. aqui)

Para um juiz-desembargador, um homem tão religioso e temente a Deus como o juiz Vaz Patto, proceder de outro modo seria não apenas corrupção, seria também pecado. Seria compará-lo ao juiz Rui Rangel que foi condenado pelo TEDH por falta de imparcialidade, quer dizer, por corrupção (cf. aqui), e foi recentemente expulso da magistratura pelo mesmo motivo (cf. aqui). 

Qualquer outra presunção acerca do juiz Vaz Patto seria ofensiva da sua honra e a justificar um processo por difamação do tipo Chapa 50.

(Continua)

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