10 novembro 2020

Um juiz à solta (XI)

 (Continuação daqui)



XI. Constituição ou Catecismo?

O título "A Armada do Papa" que Gordon Urquhart deu ao seu livro sobre o Movimento dos Focolares (cf. aqui) é um título muito sugestivo porque alude a uma das características principais dos focolares - o seu proselitismo agressivo, uma característica que é, evidentemente, protestante.

Sob uma aparência discreta e feminina, os focolares não olham a meios para atingirem os seus fins, rivalizando neste aspecto com os jesuítas que também representam a catolicização de uma seita protestante de uma das maiores correntes do protestantismo - o luteranismo. Daí a rivalidade e a animosidade dos jesuítas para com os focolares (cf. aqui). No dizer popular, são ambos farinha do mesmo saco.

No último século, a Igreja tem vindo a perder fieis a um ritmo acelerado. Para uma Igreja que pretende ser universal - que é o significado original em grego da palavra católico - a Igreja Católica, com mais de dois mil anos de existência, abrange hoje apenas cerca de 22% da população mundial. A este ritmo, o seu ideal de abarcar toda a humanidade demorará dez mil anos a realizar, isto é, uma eternidade.

Mas não é apenas a perda de fieis que tem preocupado as autoridades católicas nas últimas décadas. É que essa perda de fieis tem sido particularmente acentuada no mundo desenvolvido. A religião católica não é mais uma religião do primeiro mundo. A capital do catolicismo é hoje a América Latina, um continente pobre. E o crescimento dos fieis católicos ocorre sobretudo em África, o mais pobre dos continentes do mundo.

A Igreja Católica não está somente a perder fieis, ela está também a tornar-se uma religião do terceiro mundo. E isso não é surpreendente numa religião que defende os valores da pobreza, da autoridade e da obediência absoluta, da castidade, da comunidade e da caridade, os quais se opõem de uma maneira quase radical aos valores de uma sociedade moderna.

Foi para combater esta tendência de declínio que, sobretudo desde o papado de João Paulo II, a Igreja tem vindo a apadrinhar o nascimento e a multiplicação destes movimentos laicos de inspiração protestante, fortemente militantes e animados por um proselitismo agressivo - como os Neocatecumenais, o Comunhão e Libertação ou os Focolares. A designação de "A Armada do Papa" dada aos focolares faz lembrar o nome pelo qual os jesuítas ficaram conhecidos quando a reforma protestante ameaçou a existência da Igreja Católica - "Os Soldados do Papa".

O juiz Pedro Vaz Patto é o exemplo acabado desta militância agressiva que não olha a meios para atingir os seus fins. A sua vida pública deixa perceber que o Tribunal da Relação do Porto parece interessar-lhe somente  para ir lá receber o vencimento que lhe permite prosseguir o seu incansável proselitismo político e religioso. E os princípios da sua profissão de juiz são pisados indiferentemente e sem remorso  na prossecução desses mesmos fins.

Fazendo eco da Constituição, o Código de Conduta dos juízes impõe, logo no seu Artº 1º que

"Os magistrados judiciais administram a justiça em nome do povo, de acordo com a Constituição e a lei, assegurando a defesa dos direitos e dos interesses legalmente protegidos, reprimindo a violação da legalidade democrática, dirimindo os conflitos de interesses públicos e privados e garantindo a igualdade processual dos interessados nas causas que lhe são submetidas" (cf. aqui, ênfases meus).

O juízes devem, portanto, lealdade ao povo português e ao Estado democrático que o representa, à Constituição e às leis do país, competindo-lhe defender os direitos dos cidadãos previstos na Constituição e nas leis. Mais adiante, o Artº 3º consagra os princípios de comportamento através  dos quais os juízes cumprem a sua missão, sobressaindo, como mais importantes, os princípios inter-relacionados da imparcialidade e da independência.

Acontece, porém que, além de juiz num tribunal superior do país - o Tribunal da Relação do Porto -, o juiz Pedro Vaz Patto é também o porta-voz laico dos bispos católicos, enquanto presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, um organismo da Conferência Episcopal Portuguesa. 

Põe-se, portanto, a questão de saber se as suas lealdades são para com o povo português e o Estado democrático português, como manda a Constituição e o seu Código de Conduta, e que é quem lhe paga, ou, pelo contrário, são para com os bispos católicos portugueses e a Igreja Católica. E, no seu ofício de julgar, o juiz Vaz Patto obedece à Constituição da República Portuguesa ou ao Catecismo da Igreja Católica?

Não são raras as situações em que a Constituição contende com o Catecismo e uma delas ocorre nos processos judiciais por difamação a que fiz referência anterior.

Nestes processos, estão em conflito dois direitos individuais, o direito à liberdade de expressão e o direito à honra. Tratando-se de matéria regulada pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) que Portugal subscreveu em 1978, a Constituição remete para a CEDH como sendo lei em Portugal, bem como para a  jurisprudência que lhe está associada e que é produzida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH).

Esta jurisprudência, que é uma jurisprudência democrática, concede um predomínio esmagador ao direito à liberdade de expressão sobre o direito à honra, sobretudo tratando-se de figuras pública e com poder, como os políticos e os juízes. Numa frase do TEDH que se tornou célebre,

"A liberdade de expressão vale não somente para as informações ou ideias favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam" (cf. aqui).

Para a teologia católica, pelo contrário, sendo o homem feito à imagem e semelhança de Deus ele é possuidor de uma dignidade inviolável. As ofensas estão excluídas (embora Cristo tenha ofendido, e não pouco, os fariseus, e até a própria Mãe).

Quanto à liberdade, ela é, para a teologia católica, a origem de todo o pecado:

"1739. Liberdade e pecado. A liberdade do homem é finita e falível. E, de facto, o homem falhou. Livremente, pecou. (...) A história da humanidade, desde as suas origens, dá testemunho de desgraças e opressões nascidas do coração do homem, como consequência do mau uso da liberdade" (Catecismo da Igreja Católica: 1739, cf. aqui).

Consequentemente, a Igreja opõe-se à liberdade de expressão como princípio geral do comportamento humano:

"1740. Ameaças à liberdade. O exercício da liberdade não implica o direito de tudo dizer e fazer. (...)" (ibid: 1740, cf. aqui).

A liberdade é a excepção, não a regra geral da acção humana. Nem poderia ser de outro modo numa instituição onde prevalecem os princípios da autoridade e da obediência absolutas.

Perante esta oposição entre a jurisprudência do TEDH e a jurisprudência católica, como é que o juiz Vaz Patto vai decidir um caso destes - segue a jurisprudência do TEDH que faz prevalecer o direito à liberdade de expressão sobre o direito à honra, ou segue a jurisprudência católica que faz prevalecer o direito à honra sobre o direito à liberdade de expressão?

Num acórdão do Tribunal da Relação do Porto sobre esta matéria, os seus colegas, juízes desembargadores Joaquim Gomes e Paula Guerreiro acabam a citar Jorge de Sena: "Quem te amar, ó liberdade, tem de amar com paciência" (cf. aqui). 

O juiz Vaz Patto seria capaz de fazer o mesmo, seguir a jurisprudência da liberdade? 

E, em caso negativo, quem estará a corromper a justiça - os seus colegas ou ele?

(Continua)

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