25 novembro 2020

A juíza Rangel (III)

 (Continuação daqui)

(Fonte: Google Imagens)

III. Sob a face angelical


A primeira coisa que me chamou a atenção no acórdão foi o apelido da juíza relatora: Rangel.

-Estaremos em presença de mais um caso de rangelismo?,

pensei.

Rangelismo é a expressão que eu próprio cunhei para designar uma forma de corrupção da justiça que consiste em fazer batota na distribuição dos processos por forma que um processo seja entregue a um juiz que se sabe antecipadamente produzirá uma sentença favorável a uma das partes (cf. aqui).

O rangelismo é a corrupção de um antigo princípio de justiça - o princípio do juiz natural -, segundo o qual a escolha de um juiz para um processo deve ser aleatória, e não predeterminada, por forma a não favorecer antecipadamente qualquer uma das partes.

A escolha da expressão rangelismo teve origem numa coincidência que está agora em vias de se tornar um dupla coincidência.

Num caso que recebeu imensa atenção mediática nos últimos meses - a  chamada Operação Lex - o juiz Rui Rangel (entretanto expulso da magistratura) foi apanhado a traficar a distribuição de um processo, no qual ele próprio era parte, com o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa.

No outro caso, a distribuição de um processo foi manipulada no Tribunal da Relação do Porto (TRP) por forma a beneficiar o político do PSD e deputado europeu Paulo Rangel, num processo em que ele era parte.

Este caso foi captado por um artista naif que é leitor deste blogue (cf. aqui). Na imagem, vê-se o juiz presidente da secção do TRP a distribuir o processo manualmente  ao juiz Pedro Vaz Patto perante o desespero da sua colega, a juíza Paula Guerreiro (que havia sido originalmente designada relatora mas que se viu obrigada a ceder essa posição ao juiz Vaz Patto).

Foi assim, com a mente paralisada nestas lembranças, que, por momentos, não consegui passar da primeira página do acórdão nº 646/20 do Tribunal Constitucional de 16 deste mês. E, muito antes de aceder à última página para conhecer a sentença, as perguntas fluíam ao meu espírito à velocidade da luz:

-Haveria aqui rangelismo?

O apelido da juíza não prenunciava nada de bom. Mas existe um antigo princípio de justiça, segundo o qual qualquer pessoa tem de ser presumida inocente até prova em contrário. O facto de a juíza Rangel ter tirado o seu curso de Direito na Universidade Católica, sua alma mater - soube eu, entretanto, pela net - e o facto de a sua especialidade ser o Direito Europeu, também não ajudavam.

No fim, podiam ser tudo coincidências. 

Porém, como há muita gente que afirma que não há coincidências neste mundo, o meu espírito continuou a fluir perguntas:

-E como terá o processo ido parar às mãos da juíza Rangel? 

-Só pode ter sido por distribuição aleatória,

respondi eu próprio, porque é assim que mandam as regras e ainda há pouco o Conselho Superior da Magistratura mandou fazer uma auditoria à distribuição de processos em todos os tribunais superiores do país e não encontrou nenhuma irregularidade (cf. aqui).

Aparentemente, o Tribunal Constitucional ficou de fora desta auditoria, pelo que cabe sempre perguntar:

-Ou será que a distribuição foi manipulada?

-E, nesse caso, para beneficiar quem - um primo da juíza Rangel, um cunhado, um qualquer outro membro da família Rangel, um amigo, um colega de Faculdade, um confrade numa igreja, num clube de futebol (como fazia o juiz Rangel) ou, sabe-se lá, nalgum partido político?

Sob a face angelical da juíza Rangel que fui descobrir ao Google Imagens eu  não conseguia acreditar que pudesse existir uma juíza corrupta. E foi com este espírito que parti à descoberta do enigma que é o tema desta série de posts:

-Terá havido rangelismo na distribuição do processo a que se refere o acórdão 646/20 do Tribunal Constitucional?

(Continua)

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