16 agosto 2020

O vírus (I)

I. Praia da Comporta



O magistrado X já não se apresentava ao trabalho desde que tinha sido promovido em 26 de Dezembro de 2019 (cf. aqui).

Ele era agora Procurador da República, 661º na lista de antiguidades, com a impressionante antiguidade de 5 dias na função à data de 31 de Dezembro de 2019 (cf. aqui, p. 171). Trabalhar para quê se as promoções no Ministério Público se faziam por antiguidade e por um exame onde se podia levar cábulas?

Desde Novembro que ele ouvira falar que havia covid na China e, ao contrário da Directora-Geral de Saúde, antecipou logo que a coisa ia chegar cá. Por isso, já não regressou das férias do Natal e Ano Novo. Autodeclarou-se em quarentena - porque os magistrados do Ministério Público em Portugal, ao contrário dos outros países, gozam de um poder soberano -,  e só voltou ao trabalho para arrumar uns papeis no dia 14 de Julho. Era a véspera de entrar no gozo das suas merecidas férias - as famosas férias judiciais- que têm a curta duração de 45 dias.

Durante todos estes meses fechado em casa e dedicado à reflexão, o magistrado X tinha ganho uma certa simpatia pelo covid. Com 51 anos de idade a completar no próximo dia 6 de Outubro e sendo 661º na lista de antiguidades dos Procuradores da República só com muita sorte ele seria um dia promovido a Procurador-Geral Adjunto, que é o topo da hierarquia e a categoria onde se ganha mais que a primeiro-ministro. A sua esperança era agora que o covid fizesse uma razia entre os colegas mais velhos que estavam à sua frente na lista de antiguidades.

Estava ele entregue a estes altos pensamentos quando foi requisitado por decisão da ministra da Justiça para se apresentar ao serviço no dia 12 de Agosto, em regime de trabalho extraordinário, pago com um prémio de 700% sobre o salário horário normal. O Ministério Público  estava assoberbado com investigações ao vírus e o alarme público tinha-se instalado:

"Covid19: MP já instaurou 50 inquéritos por propagação da doença" (cf. aqui)

O magistrado X tinha sido destacado para chefiar uma equipa do MP que iria investigar o vírus na Praia da Comporta. A missão era muito delicada porque desde que o Ministério Público arrestara a Herdade da Comporta à família Espírito Santo, ela era agora sobretudo utilizada para a hierarquia do MP passar férias. Recentemente, certos zunzuns nos jornais davam conta de que tinha lá sido organizada uma festa de sexo:

"Festa de sexo na Comporta com mais de 40 convidados acontece este fim de semana. Orgia milionária preocupa autoridades" (cf. aqui).

Ora, se ninguém conseguia encontrar o covid, a tese do magistrado X era precisamente a de que o covid podia muito bem estar no sexo. A referência a "orgia milionária" era evidentemente uma alusão aos vencimentos milionários auferidos pelos magistrados do Ministério Público.

Eram onze da manhã de quinta-feira, dia 13, quando o magistrado X se instalou com as suas auxiliares na zona naturista da Praia da Comporta, delimitando a área sob investigação judicial e dando indicações às suas ajudantes com o distanciamento e o formalismo que são próprios de quem ganha a vida sem fazer nada:

-Senhoras Procuradoras Adjuntas… nos termos da alínea g) do artº 1546º do Código do Processo Penal … queiram procurar o vírus covid19 por tudo quanto é sítio...

A Procuradora Lili pôs imediatamente os seus óculos escuros para procurar o vírus nos raios solares, e a Procuradora Fafá muniu-se de uma lupa para procurar o vírus nos grãos de areia e também nas partículas do ar.

E assim ficaram durante três horas, com um intervalo de duas horas e meia para almoço:

À procura do vírus


Sem resultados. O primeiro facto significativo no avanço das investigações viria a ocorrer pouco depois das três da tarde, sem que ninguém o esperasse ou tivesse previsto.

(Continua)

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