IV. O exame
-Senhor Procurador Adjunto Rocha … separam-nos 38 páginas na Lista de Antiguidades do Ministério Público… Esta é oportunidade para o Senhor se aproximar…
Foi assim que o Procurador-Geral Adjunto Toni Guimarães fez sentir o peso da hierarquia ao magistrado X ainda antes de começar o exame. Na verdade, na Lista de Antiguidades do Ministério Público, relativa a 31 de Dezembro de 2018, o magistrado Guimarães aparecia na 4ª página e no 60º lugar entre os Procuradores-Gerais Adjuntos, ao passo que o magistrado X só aparecia lá para o fim da lista, na 42ª página e na 116ª posição entre os Procuradores Adjuntos (cf. aqui).
Em termos de categoria, separava-os apenas uma palavra - Geral -, o magistrado Guimarães era Procurador-Geral Adjunto e o magistrado X era simplesmente Procurador Adjunto. Mas a palavra "Geral" tinha no Ministério Público uma extraordinária importância em termos da hierarquia e do vencimento. Era a palavra "Geral" que permitia aos magistrados do Ministério Público ganharem mais do que o primeiro-ministro. Nunca, e em nenhum outro lugar, a palavra "Geral" alguma vez teve tanto valor.
O "rigoroso exame" a que aludia o edital publicado em Diário da República referente ao concurso para Procurador da República era uma prova oral com duas perguntas apenas. Era este exame, que tinha um peso de 3% na classificação final dos candidatos, o elemento de avaliação que em 2019 revolucionara por completo os critérios de promoção vigentes no Ministério Público, enfatizando decisivamente o mérito em prejuízo da antiguidade, a qual passava a valer somente 97%.
Foi o presidente do júri que tomou a palavra:
-Senhor Procurador Adjunto Zé Ferreira, a primeira questão do seu exame é a seguinte: "Pode um comentador televisivo, comentando sobre uma questão de interesse público, ofender um político?".
-Não,
respondeu prontamente o magistrado X. E antes que os membros do júri pudessem reagir, já o magistrado X justificava a resposta:
-Excepto se o político não fôr do meu partido… porque aí já pode…
Os membros do júri entreolharam-se com ar de aprovação e surpresa pela rapidez e pela exactidão da resposta. Esta era, de facto, uma pergunta fácil de mais para o magistrado X.
O presidente do júri passou imediatamente à segunda questão:
-Senhor Procurador Adjunto Zé da Rocha, é a seguinte a segunda questão do seu exame: "A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que Portugal subscreveu em 1978, aplica-se a Portugal?".
O magistrado X olhou fixamente o presidente do júri por uns momentos, assentou o cotovelo direito sobre o tampo da carteira, colocou o indicador direito sobre o queixo, revirou os olhos, fixando-os no tecto, e ficou a pensar.
Ficou assim, a olhar para o tecto e a pensar, durante seis minutos.
Uma das vogais, a magistrada Maria Amélia, com vinte sete anos, quatro meses e dois dias de antiguidade no Ministério Publico, e três anos, oito meses e dez dias de antiguidade como Procuradora da República, comoveu-se com a dificuldade da pergunta e começou a assobiar discretamente entre os dentes:
-Ssssssssss.
Mas o magistrado X estava demasiadamente concentrado no tecto para notar.
Passados os seis minutos, o magistrado X tirou o dedo do queixo, levantou o cotovelo do tampo da carteira, deixou de revirar os olhos, olhou de novo para o presidente do júri, e disse:
-Senhor Procurador-Geral Adjunto… posso ir lá fora à casa de banho?...
O magistrado Toni Guimarães acenou afirmativamente com a cabeça e o magistrado X saiu da sala disparado, acendeu um cigarro, e encaminhou-se para a casa de banho.
Ele lembrava-se de ter feito uma cábula com a resposta àquela pergunta. E começou por consultar as cábulas que tinha nos bolsos. No bolso esquerdo do casaco tinhas as cábulas 27 a 35. Atrás das orelhas, presas por elásticos, tinha as cábulas 88 e 89.
Ele sabia que a resposta estava na cábula 78 porque se lembrava de ter associado o número da cábula ao ano em que Portugal assinou a Convenção Europeia dos Direitos do Homem: 1978. Mas, por mais que puxasse pela memória, não se lembrava onde a tinha escondido
Entrou na casa de banho e começou a despir-se. Das axilas caíram as cábulas 22 e 23, relativas à duração da prisão preventiva e ao termo de identidade e residência. Ao baixar as calças, saltaram-lhe das virilhas as cábulas 9 e 37. Aconchegada ao escroto, presa por um adesivo, estava a cábula 66. O nervosismo aumentava à medida que as cábulas se espalhavam pelo chão da casa de banho.
Quando a mulher da limpeza assomou à porta a perguntar se podia entrar para fazer a limpeza das 11:15, ele atrapalhou-se, vestiu-se à pressa e saiu disparado de volta à sala do exame, onde os três membros do júri o aguardavam com uma impaciência crescente.
Tivesse ele tirado as peúgas e ter-se-ia recordado que, nessa manhã ao vestir-se, tinha escondido a cábula número 78 entre a peúga e o dedo grande do pé direito.
Quando entrou na sala sentou-se com um ar confiante e decidido, disfarçando o nervosismo. Os membros do júri olharam para ele na expectativa da resposta iminente, a magistrada Maria Amélia continuava a assobiar Sssssssss entre os dentes.
Foi neste ambiente de grande tensão que ele quebrou finalmente o silêncio. Dirigindo-se ao presidente do júri com uma voz que quase não se conseguia ouvir, disse:
-Senhor Procurador-Geral Adjunto… não se importa de repetir a pergunta?...
Foi como se um balão de S. João se tivesse esvaziado na sala. Com um ar visivelmente contrariado, o magistrado Guimarães acedeu ao pedido:
-Senhor Procurador Adjunto Manel da Rocha… a pergunta é a seguinte: "A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que Portugal subscreveu em 1978, aplica-se a Portugal? Sim ou Não?".
O magistrado X tinha uma ideia remota de que já um dia tivera de dar resposta a esta questão, mas não se lembrava onde nem quando.
A hipótese de encontrar a cábula numero 78, esquecida entre a peúga e o dedo grande do pé direito, estava agora definitivamente afastada. E também não acreditava na dica da magistrada Maria Amélia porque os magistrados do Ministério Público, à custa de verem crimes em todo o lado, acabavam a ver-se uns aos outros como criminosos. O sinal dado pela magistrada Maria Amélia só podia ser uma fraude.
Foi então que, a coçar a cabeça, e olhando uma derradeira vez para o tecto, respondeu:
-Não.
Quem, meses depois, consultasse a Lista de Antiguidades do Ministério Público relativa a 31 de Dezembro de 2019 (cf. aqui), podia constatar que o Procurador-Geral Adjunto Toni Guimarães, na impossibilidade de subir de categoria, tinha, não obstante, subido 24 lugares em antiguidade porque dez dos seus colegas mais velhos se reformaram durante o ano, e outros catorze morreram. Escusado será dizer que o magistrado Guimarães compareceu aos funerais, sentindo a morte de todos eles, com um profundo pesar. Graças às dez aposentações e aos catorze funerais ele era agora 36º na lista de antiguidades dos Procuradores-Gerais Adjuntos.
Mas quem fosse à procura do magistrado X na lista de antiguidade dos Procuradores Adjuntos, já não o encontrava lá. Tinha sido aprovado com louvor e distinção e promovido a Procurador da República, sendo 661º na ordem de antiguidades com a impressionante antiguidade de cinco dias na função - uns preciosos cinco dias que contavam um ano inteiro para reforma, que era aquilo que todos ambicionavam atingir no Ministério Público, se não morressem antes.
Foi um salto de gigante. O magistrado X estava agora apenas a 15 páginas - umas meras 15 páginas - de distância do seu examinador, ele na página 171 do Diário da República, o magistrado Guimarães na página 156.
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