Num artigo recente no Jornal i, o bastonário da Ordem dos Advogados, Meneses Leitão, comentando as medidas para a reforma da Justiça propostas pelo consultor do Governo António Costa e Silva no seu documento de estratégia para a década 2020-30, considera-as a todas banais. E vai mais longe, afirmando que há muita gente que opina sobre a Justiça sem saber nada acerca dela (cf. aqui).
A verdade, porém, é que o sistema de Justiça que temos, construído com base em opiniões de gente que sabe muito acerca dela, conduziu à situação actual - um serviço de justiça em que os portugueses não acreditam e que é sistematicamente considerado, nos inquéritos de opinião, como o pior serviço público prestado pelo Estado português aos seus cidadãos.
Ao contrário do bastonário Meneses Leitão, eu estou convencido que os insiders agrupados nas suas três corporações - advogados, juízes e procuradores do ministério público - nunca o irão reformar, e que vão ter se ser os outsiders a fazê-lo. A razão é que existem interesses estabelecidos há séculos no sistema de justiça português que só muito dificilmente aceitam ser destituídos de maneira voluntária.
Neste post, trato um dos piores defeitos do nosso sistema de justiça, aquele pelo qual Portugal mais vezes tem sido condenado no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, perto de 150 vezes desde que aderiu à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) em 1978 - as demoras na justiça.
À luz da CEDH, a demora na execução da justiça constitui a violação de um dos direitos humanos fundamentais - a execução da justiça dentro de um prazo razoável, previsto no artigo 6º da CEDH.Não se trata de um defeito novo no nosso sistema de justiça. É um defeito antigo e com tradição em que o tempo da justiça corre ao mesmo ritmo que corria na Idade Média.
Em particular, pretendo analisar como os interesses de uma corporação em concreto - o Ministério Público - contribuem para demorar a justiça. Ainda recentemente, o tema esteve em foco com a produção da acusação no caso BES pelo MP, que demorou seis anos, estimando-se que o processo, em que somente a acusação tem 4117 páginas, se estenderá, pelo menos, por mais oito ou dez anos.O processo Marquês, com 4 mil páginas de acusação, já leva 7 anos e não será encerrado antes que decorra pelo menos mais uma década. O caso EDP, com mais de mil páginas de acusação, leva já 8 anos nas mãos do Ministério Público e a estimativa para o futuro é idêntica às anteriores.
Por que é que o Ministério Público, nestes casos - todos envolvendo grandes montantes em dinheiro - produz acusações tão longas, complexas e rebuscadas que levam a que os processos judiciais se prolonguem eternamente nos tribunais?
Para responder a esta questão é necessário ir de volta à instituição que precedeu o Ministério Público e que o formatou na sua versão moderna - a Inquisição - e aos meus dois posts anteriores.
Entre as medidas de coacção preventivas que o Ministério Público - como antes a Inquisição - impõe aos arguidos está o arresto dos seus bens e a prestação de cauções. Estes valores assim confiscados ficam à guarda do Estado e, em última instância revertem para o Estado. Excepto se o arguido um dia, em sentença transitada em julgado, for declarado inocente, caso em que tem direito a reaver os bens que lhe foram arrestados ou prestados em caução.
Em 1563, por alvará do Cardeal D. Henrique, o Estado abdicou destes bens doando-os aos inquisidores que, ainda por cima, os podiam vender livremente sem pagamento de impostos.
Esta medida teve os seguintes efeitos principais:
Primeiro, deu um forte incentivo aos inquisidores a acusarem criminalmente pessoas ricas e inocentes ficando-lhes com os bens. Na realidade, os principais alvos da Inquisição foram os judeus convertidos ou cristãos-novos, que eram os homens de negócios da época.
Segundo, deu um forte incentivo aos inquisidores a elaborarem acusações longas, complexas e demoradas, que levassem muito tempo a ser julgadas. O objectivo era que os arguidos morressem durante o processo sem uma sentença transitada em julgado, porque assim os inquisidores não tinham de devolver aos arguidos inocentes os bens que arbitrariamente lhes confiscaram e que, entretanto, tinham feito seus.
O Ministério Público foi criado em 1832, sucedendo à Inquisição que foi extinta em 1821 com a queda da monarquia absoluta em virtude da revolução liberal de 1820. O Ministério Público é uma inquisição laica, em que a principal diferença é a de que os novos inquisidores, em lugar de serem padres, passaram a ser juristas. Porém, a semelhança que mantiveram com os padres permanece até hoje extraordinária, como é ilustrado no meu post anterior.
A cultura do confisco, que existia na antiga Inquisição, transmitiu-se ao Ministério Público. A tal ponto que uma das primeiras tarefas dos novos inquisidores foi a de confiscarem a riqueza dos antigos inquisidores, através da apropriação pelo Estado dos bens da Igreja, que caracterizou a década de 1830. Ladrão que rouba a ladrão tem mil anos de perdão.
Compreende-se agora por que é que o Ministério Público, no caso BES, demorou 6 anos a elaborar uma acusação de 4117 páginas, num processo que demorará mais dez anos até ser pronunciada a sentença final nos tribunais.
Falando só de Ricardo Salgado, que é o arguido a quem foram arrestados mais bens e exigidas cauções de maior valor. Ricardo Salgado tem 76 anos, e a esperança de vida do homem português é presentemente de 79 anos. A probabilidade é a de que, daqui por dez anos, ele já cá não esteja, e os seus bens sejam irremediavelmente perdidos a favor do Estado.
Existe uma tradição criminosa dentro do Estado português que em séculos anteriores foi interpretada pela Inquisição, e que é hoje interpretada pelo Ministério Público. Enquanto esta tradição criminosa persistir dentro do Estado, como é que os cidadãos poderão acreditar na Justiça ou sequer ter uma Justiça célere?
Sem comentários:
Enviar um comentário