O texto citado no post anterior é constituído pelos dois parágrafos finais de um subcapítulo do Despacho de Acusação do Ministério Público sobre o caso BES em que, de uma assentada, são mortos milhares de personagens que, a sobreviverem, só atrapalhariam o argumento, impedindo que o filme tivesse o desfecho que os argumentistas desejavam para ele.
Em lugar de 25 réus, 18 pessoas singulares e sete pessoas colectivas, o caso BES teria milhares de réus e nem o Estádio da Luz seria capaz de acomodar o tribunal para os julgar.
O subcapítulo refere-se à emissão de papel comercial (títulos de dívida de curto prazo) de empresas do GES, que foram vendidos através da rede comercial do BES, e em que os investidores acabaram a perder o dinheiro que nele investiram.
Segundo o argumentista José Ranito e seus auxiliares, esta emissão de papel comercial foi arquitectada por Ricardo Salgado e os seus onze capangas.
Os títulos passaram pela direcção comercial do Banco, pelas 18 direcções regionais, pelas centenas de direções de balcão e pelos milhares de gestores de conta do BES até chegarem às mãos dos investidores de retalho e de private (investidores com um património mais significativo e geralmente mais sofisticados). Terão passado também pelas empresas de auditoria do Banco e pelas mãos da CMVM.
E o que é que é surpreendente acerca desta emissão de papel comercial do grupo GES?
O facto de, à excepção do Ricardo Salgado e dos seus onze capangas, ninguém saber do que é que se tratava. Milhares de funcionários do BES (desde directores altamente remunerados até gestores de conta na mais remota localidade do país ou do estrangeiro) andaram a vender estes títulos aos clientes do Banco, sem saberem o que é que estavam a vender.
Os títulos ofereciam aos seus compradores um juro superior ao juro de mercado, o sinal mais evidente que envolviam um risco considerável, e que veio a materializar-se.
Mas, entre centenas de milhar ou mesmo milhões de compradores, ninguém se interessou por saber qual era o risco envolvido. E, mesmo que se interessasse, não obteria resposta, segundo a acusação, porque Ricardo Salgado e os seus capangas mantinham tudo em segredo.
Não obstante, os clientes do BES continuaram a comprar os títulos.
Coitadinhos dos investidores, que não sabiam o que estavam a comprar. E coitadinhos dos milhares de colaboradores do BES que não sabiam o que estavam a vender. Uma ex-colaboradora do BES é mesmo citada a dizer que teve de ir de volta às sebentas da Faculdade para saber o que era aquilo. E eu fico até a pensar quando o folheto lhe chegou às mãos descrevendo as condições de emissão, que ela terá exclamado: "Ai um bicho!..."
A acusação do Ministério Público não menciona que, para além dos pequenos investidores que perderam o seu dinheiro no papel comercial do GES, também houve grandes investidores a perdê-lo (cf. aqui) e até Bancos, cujos nomes eu me escuso de indicar. Pois também os Bancos o Ricardo Salgado conseguiu enganar, ajudado pelos seus onze capangas.
Se todos os colaboradores do BES que participaram na emissão e na venda do papel comercial fossem chamados a assumir as suas responsabilidades, teriam de ser co-arguidos no processo, ao lado de Ricardo Salgado e dos seus onze capangas. Mas isso estragava o argumento todo. Não havia tribunal que chegasse para tantos réus.
Por isso, era preciso matá-los. E é isso que faz o Despacho de Acusação logo no início (página 110, cf. aqui, não esquecendo que o Despacho tem 4117 páginas)
Através deste golpe de mágica, a realidade fica truncada e o mundo que dali resulta é um mundo habitado por uma dúzia de vilões e uma multidão de palermas.
Este mundo não existe. Este mundo é uma ficção do argumentista José Ranito e dos seus ajudantes.
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