10 junho 2020

A promoção (III)

(Continuação daqui)


III. A identificação


O exame para "Procurador da República" era constituído por uma prova oral presidida por um júri de três examinadores. O presidente do júri tinha de ser, por lei, um Procurador-Geral Adjunto, que é a categoria de topo na hierarquia do Ministério Público.

O magistrado X entrou na sala muito nervoso, tinha acabado de fumar o décimo-primeiro cigarro do dia, embora ainda só fossem nove e meia da manhã. Sentou-se na carteira, e ficou a olhar para o júri que já estava sentado à sua frente.

O júri tinha ao centro, a presidente, o Procurador-Geral Adjunto Toni Guimarães, ladeado por duas Procuradoras da República já entradas na idade, cada uma com antiguidade superior a 25 anos no Ministério Público.

O magistrado Toni Guimarães estava particularmente feliz nesse dia, 25 de Outubro de 2019. Tinha acabado de ir ao multibanco. O aumento de 700 euros por mês que o presidente Ventinhas do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público conseguira no último verão para os Procuradores-Gerais Adjuntos (cf. aqui), chantageando o Governo e o Presidente da República com a ameaça "Ou dão o aumento ou damos-vos cabo da vida e da carreira política", tinha acabado de lhe entrar na conta. Os retroactivos também. Pela primeira vez na história de Portugal, uma burocracia do Estado tinha vencimentos superiores ao do primeiro-ministro e o magistrado Guimarães, no topo da carreira, era um dos contemplados.

Os procuradores do Ministério Público com grande longevidade na carreira, como era notoriamente o caso do Procurador-Geral Adjunto Guimarães, acabavam por desenvolver um vício profissional a que nenhum escapava. Habituados a lidar com crimes e criminosos todos os dias ao longo de muitos anos, a partir de certa altura, eles viam criminosos em quem lhes aparecia pela frente, e descortinavam os crimes somente pelo pestanejar das pessoas com quem se cruzavam na rua.

Por isso, a questão da identificação do examinando revestia uma importância crucial no processo das promoções, não fosse um farsante qualquer estar ali a fazer-se passar por magistrado X, natural de Penafiel, Procurador Adjunto com dezanove anos, três meses e vinte e três dias de antiguidade no lugar à data de 31 de Dezembro de 2018, candidato a Procurador da República. Sobretudo, havia que evitar o escândalo que abalara o Ministério Público uns anos antes quando um requintado burlão, fazendo-se passar por inspector da Polícia Judiciária e da Interpol, acabou a dormir com duas magistradas do Ministério Público, embora uma só de cada vez (cf. aqui).

Foi, por isso, o magistrado Toni Guimarães, como presidente do júri, que tomou a palavra:

-Senhor Procurador Adjunto Rocha… muito bom dia…,

enfatizando a expressão "Procurador Adjunto" para vincar com toda a clareza a posição de inferioridade hierárquica do magistrado X.

-Muito bom dia… Senhor Procurador-Geral Adjunto … e Senhoras Procuradoras da República…,

retorquiu o magistrado X timidamente.

-Diga-me, Senhor Procurador Adjunto Zé Manel… está preparado para responder às questões que lhe vamos colocar neste exame oral que é decisivo para a sua carreira no Ministério Público?...,

perguntou o presidente do júri ao magistrado X porque Rochas havia muitos, Zé Maneis Rochas é que talvez não.

-Sim... Senhor Procurador-Geral Adjunto…,

respondeu, hesitante, o magistrado X porque exames, ainda por cima sem um colega ao lado para copiar, nunca tinham sido o seu forte.

O diálogo decorria neste tom de Senhor Procurador Adjunto cá, Senhor Procurador-Geral Adjunto lá, e foi a vez de o presidente do júri voltar à carga:

-O Senhor Procurador Adjunto Ferreira por certo saberá que não são permitidas fraudes de qualquer espécie durante a realização do exame…,

porque Zé Maneis Rochas não faltavam por aí, agora, Zé Maneis Rochas e ainda por cima, Ferreira é que talvez não tanto.

-Seguramente... Senhor Procurador-Geral Adjunto…,

respondeu, a tremer, o magistrado X, a antecipar a possibilidade de ser apanhado.

-Pois bem, Senhor Procurador Adjunto Da... vou colocar-lhe duas questões prévias antes de passarmos ao exame,

porque Zé Maneis, Rochas e Ferreiras é o que há mais por aí, mas não tanto Das que é o que dava o toque aristocrático ao nome do magistrado X.

-Faz favor de me tratar por da, Senhor Procurador-Geral Adjunto… com d pequeno...,

respondeu humildemente o magistrado X.

-Pois, então, Senhor Procurador Adjunto da Rocha… diga-me qual é o Santo Padroeiro da cidade de Penafiel…

E o magistrado X, rapidíssimo:

-São Martinho… Senhor Procurador-Geral Adjunto… São Martinho...

Esta resposta parece ter satisfeito o magistrado Toni Guimarães. Zé Maneis, Ferreiras, das, Rochas devia haver muitos por aí, agora de Penafiel só devia haver mesmo um. Não restavam dúvidas que o júri tinha pela frente o verdadeiro magistrado X, natural de Penafiel, Procurador Adjunto, com dezanove anos, três meses e vinte e três dias de antiguidade no lugar à data de 31 de Dezembro de 2018, candidato a Procurador da República.

Faltava apenas testá-lo quanto à sua lealdade.  O Ministério Público tornava público que as suas promoções eram por antiguidade e por mérito, mas na realidade, havia um terceiro factor que era tão importante como a antiguidade, mas que o Ministério Público não podia revelar.

O Ministério Publico tinha dois patrões, que se alternavam no comando da instituição há mais de quarenta anos. O próprio magistrado Guimarães tinha sido promovido a Procurador-Geral Adjunto poucos meses depois do último Governo PSD ter tomado posse (cf. aqui). Era importante que ele se cerficasse agora, em relação ao magistrado X, que não ia promover a Procurador da República um magistrado que obedecia a outro patrão que não o seu.

A pergunta parecia absolutamente despropositada, mas não para quem conhecesse o Ministério Público. Foi com a maior candura que o magistrado Guimarães perguntou ao magistrado X:

-Senhor Procurador Adjunto Ferreira da... Dentre as cores do arco-íris, qual é a sua preferida?

-Laranja, Senhor Procurador-Geral Adjunto… Laranja!...,

respondeu prontamente o magistrado X.

(Continua)

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