09 junho 2020

A promoção (II)

(Continuação daqui)


II. A rezar


No edital que anunciava a abertura do concurso para "Procurador da República", a Procuradoria-Geral da República (PGR), que é o órgão de cúpula do Ministério Público, dizia que desta vez iria ser diferente, muito diferente.

A convicção era a mesma com que a PGR, a propósito de qualquer assunto que comovia a opinião pública, como o atropelamento de um cão numa estrada florestal, costumava anunciar que iria proceder à abertura de um "rigoroso inquérito" e que os criminosos seriam severa e exemplarmente punidos.

A diferença - assegurava a PGR - é que desta vez os Procuradores da República não iriam ser escolhidos por antiguidade, mas por mérito. Os novos Procuradores - explicava o edital - não seriam  aqueles que tivessem menos magistrados do MP à sua frente à espera de morrer, mas aqueles que mostrassem maior competência para a função, avaliada através de um "rigoroso exame".

Umas linhas adiante, o edital especificava a ponderação que cada uma destas componente teria na nota final dos candidatos:

-Antiguidade: 97%
-Exame: 3%

Nas semanas que precederam o exame, o magistrado X, que nunca tinha gostado de estudar e que tinha uma confiança ilimitada na sua capacidade para cometer fraudes nos exames, como copiar pelo seu colega do lado, ou sacar de uma cábula da algibeira, retirou-se para a sua cidade natal para se preparar e concentrar para a dura prova que o aguardava.

A verdade, porém, é que, de acordo com os relatos dos seus amigos de infância, que estranharam a sua presença na cidade, nunca ninguém o viu a estudar. Na realidade, nunca ninguém em Penafiel vira o magistrado X a estudar, fosse agora fosse há 25 ou há 40 anos atrás. A copiar nos exames, sim, e isso logo desde a escola primária.

Verdadeiramente estranho para os seus amigos de infância, e ele tinha muitos na cidade, era verem-no todos os dias ajoelhado a rezar na igreja matriz da cidade durante horas a fio. Isso é que era verdadeiramente um mistério para quem o conhecia desde menino.

Foi o Humberto que um dia se aventurou, um tanto timidamente - porque, é preciso não esquecer, ele agora era magistrado do Ministério Público e metia medo a muita gente - a perguntar-lhe por que é que ele passava tantas horas a rezar.

O magistrado X, com aquele ar sério que é próprio de um magistrado do MP, respondeu ao Humberto que rezava à longevidade de todos os homens e mulheres deste mundo, para que vivessem muitos, longos e bons anos, e que rezava, em especial, à longevidade de todos os magistrados e magistradas do Ministério Público que estavam à sua frente na Lista de Antiguidades.

O Humberto fingiu aceitar a explicação. O magistrado X não gozava de grande credibilidade entre os seus amigos de infância que não estranharam nada quando, aos 30 anos, ele conseguiu arranjar um lugar no Ministério Público. Era um dos poucos lugares na vida onde se podia mentir à vontade sem nunca se ser chamado à responsabilidade. Era o lugar ideal para o amigo, comentaram eles na altura.

E foi o próprio Humberto que logo a seguir correu para o café central da cidade onde se aglomeravam os amigos à espera de serem esclarecidos por que é que o magistrado X passava agora o tempo todo  na igreja a rezar, ele que fora o adolescente mais ateu que Penafiel conhecera na sua geração.

Apesar dos seus 51 anos de idade, mas com a ingenuidade própria de uma criança que acaba de descobrir a verdade, o Humberto, ainda ofegante, mal chegou ao café, gritou para os amigos:

-Eh pá!... o Rocha anda a rezar para que morram todos os velhos que estão à frente dele na Lista de Antiguidades do Ministério Público!...

(Continua)

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