IV. Jurisprudência vs. casuística
A Declaração de Independência dos EUA (1776), que marca o surgimento do primeiro país nascido democrático no mundo, começa assim: "Nós tomamos estas verdades como sendo evidentes em si mesmas, que todos os homens são criados iguais (…)".
Na realidade, os homens são criados iguais e diferentes (v.g., todos têm cara, mas a cara de um é diferente da de todos os outros; o mesmo para o nariz, a personalidade, etc.). Porém, os fundadores americanos decidiram enfatizar a igualdade sobre a diferença, chegando ao ponto de omitir esta última, porque é o predomínio da igualdade sobre a diferença que é a marca distintiva da cultura democrática que eles perfilhavam (pelo contrário, o predomínio da diferença sobre a igualdade é a marca distintiva de uma cultura autoritária).
É também neste confronto entre a igualdade e a diferença que se distinguem a cultura jurisprudencial e a cultura casuísta na justiça.
A cultura jurisprudencial considera que em cada classe de casos judiciais (v.g., liberdade de expressão, imparcialidade dos tribunais, homicídio, etc.) há mais igualdade do que diferença, e, portanto, é possível elaborar certos princípios ou regras gerais de interpretação e aplicação das leis que valem para todos os casos dessa classe, independentemente das diferenças. E é este conjunto de princípios ou regras gerais que constitui, precisamente, a jurisprudência aplicável a essa classe de casos.
A cultura casuística, pelo contrário, considera que cada caso é diferente de todos os outros e, portanto, não é possível conceber princípios ou regras gerais que se apliquem a todos os casos de uma certa classe. O lema da cultura casuística é "cada caso é um caso".
O confronto entre as duas culturas no âmbito do Direito ficou expressa nos posts anteriores pela diferença entre a jurisprudência do TEDH e a casuística dos tribunais portugueses. É altura de reforçar que este confronto entre jurisprudência e casuística é o resultado do confronto entre a cultura democrática e a cultura autoritária, e de acrescentar que este confronto procede de um outro muito mais profundo - o confronto entre a cultura protestante e a cultura católica que se agudizou a partir do século XVI.
A casuística é um produto distintivo da cultura católica e é talvez a marca distintiva da cultura do safado ou do chico-esperto a que fiz referência em posts anteriores. Frequentemente associada aos jesuítas, mas não exclusiva deles, a casuística corrompeu todos os campos das relações humanas por onde penetrou - a moral, a teologia, a justiça.
A sua lógica é facilmente ilustrável no campo da moral, através de exemplos:
-É proibido roubar, mas não para mim, por isto, por aquilo e por aqueloutro…
-É proibido andar a mais de 120 km/hora na auto-estrada, mas eu não devo ser multado porque sou ministro e nesse dia ia atrasado para um jantar oficial…
-Nenhum agente do Estado deve utilizar dinheiros públicos para favorecer os amigos, mas o meu caso é diferente porque o meu amigo tinha a mulher muito doente, com um cancro…
Na casuística todo o homem é uma excepção e todo o caso é excepcional, mesmo não existindo regra em relação à qual todos se definem como excepção.
No campo da justiça, a casuística significa que dois casos semelhantes podem ter sentenças opostas, levando ao descrédito generalizado da justiça e à ideia de que existe uma justiça para os amigos e outras para os outros.
A casuística destrói a previsibilidade da justiça, que é um dos seus atributos principais e, pelo caminho, a própria ideia de justiça, abrindo a porta à arbitrariedade. Pelo contrário, a jurisprudência, trazendo à luz as regras que presidiram no passado ao julgamento de casos semelhantes, assegura a cada um que será julgado pelos mesmos critérios.
A presença da tradição casuística na justiça em Portugal, e a ausência de uma tradição de jurisprudência (que, não obstante, o TEDH está a ajudar a criar) é mais um sinal - e um dos mais importantes - de que, embora Portugal seja um país democrático há quase meio século, a reforma democrática da justiça continua por fazer.
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