19 maio 2020

A jurisprudência (III)

(Continuação daqui)

III. A tradição casuística


Uma das melhores características de Portugal deriva da sua cultura católica, uma palavra que significa "universal". Um país "universal" tem tudo aquilo que há no mundo e essa é uma das belezas de Portugal.

Tudo aquilo que existe no mundo existe também em Portugal. É uma questão de se procurar que se vai encontrar. É claro que, sendo Portugal um país pequeno, e possuindo tudo aquilo que há no mundo, há muitas coisas do mundo que estão representadas em Portugal numa amostra pequeníssima. Mas existem no país, e é esse o aspecto importante.

Portugal não é um país de neve. Mas, para os amantes da neve e dos desportos da neve, Portugal também tem neve, pouquinha, mas tem, lá no cimo da serra da Estrela. Quanto ao resto, Portugal é mais um país de praia do que um país de neve. Mas também tem neve e esse é, mais uma vez, o aspecto a reter acerca de Portugal ser um país de tudo.

-E quanto à jurisprudência ou à tradição de jurisprudência, Portugal tem?

-Sim, claro que tem, Portugal tem de tudo.

-Mas é mais como a praia ou mais como a neve?

-É mais como a neve, só tem um bocadinho lá no cimo da Serra da Estrela. Quanto ao resto, é mais como a praia, é mais uma tradição muito diferente da jurisprudência, na realidade uma tradição tão oposta da tradição de jurisprudência como a praia se opõe à neve.

É a tradição casuística.

Admitamos que eu quero saber a jurisprudência sobre o instituto da "Alteração não-substancial dos factos" previsto no artigo 358º do CPP e ao qual me tenho referido recentemente neste blogue. Vou ao site do Ministério Público de Lisboa e procuro o artigo 358º do  CPP (cf. aqui). Encontro lá este artigo seguido de informação sob o título "Jurisprudência". Mas o que lá está não é jurisprudência nenhuma, um argumento racional, lógico e consistente sobre a interpretação que os tribunais portugueses dão a esse instituto jurídico. Aquilo que lá está é o resumo de diversas decisões judiciais sobre casos que envolveram este instituto jurídico. É pura casuística.

Suponhamos que eu quero saber a jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto sobre um determinado assunto. Indo ao site do TRP e à secção de "Jurisprudência" (cf. aqui)  aquilo que eu encontro  lá é uma listagem de acórdãos sobre os mais diversos casos julgados pelo TRP e por outros tribunais superiores. Não encontro jurisprudência sobre qualquer assunto. Encontro um amontoado de casos, às vezes classificados por temas, é certo, mas, ainda assim, casos, pura casuística.

Pronto, está assente, admitamos que o TEDH tem uma tradição jurisprudencial ao passo que os tribunais portugueses têm uma tradição casuística.

A questão é a seguinte - isso faz alguma diferença, tem algum mal, ou é puro prazer de dizer mal daquilo que é português, que é outra característica da nossa cultura?

Sim, faz uma grande diferença, tem mal. É que a tradição casuística releva de uma cultura autoritária e antidemocrática e é a tradição através da qual se exprime a arbitrariedade da justiça. Na realidade, é a principal razão por que, desde há muitos séculos, os portugueses não acreditam na justiça.


(Continua)




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