20 maio 2020

A jurisprudência (V)

(Continuação daqui)


V. Casuística e arbitrariedade


O TEDH julga muitos casos, incluindo aqueles que se referem ao tema da liberdade de expressão. Se eu quiser conhecer a jurisprudência sobre cada classe de casos julgados pelo TEDH, incluindo a liberdade de expressão, encontro-a em publicações do próprio TEDH ou do Conselho da Europa, que é a instituição que alberga o TEDH (cf. aqui e aqui).

O Tribunal da Relação do Porto (TRP) também julga muitos casos, incluindo aqueles que se referem à liberdade de expressão.  Mas se eu quiser conhecer a jurisprudência do TRP acerca de uma classe de casos (v.g., liberdade de expressão), vou à página de internet do TRP (cf. aqui), faço click na secção que diz "Jurisprudência" e aquilo que vou encontrar não é jurisprudência nenhuma. Nem sobre "liberdade de expressão" nem sobre outro tema qualquer. Aquilo que encontro é casuística, uma série de acórdãos, ou sumários de acórdãos, relativos a casos julgados pelo TRP e outros tribunais superiores.

Quem pretender conhecer a jurisprudência do TRP sobre liberdade de expressão (ou outro tema), nunca a encontrará. O TRP, no seu site de internet, poderia simplesmente dizer que  "Sobre liberdade de expressão, o TRP segue a jurisprudência do TEDH", remetendo portanto para esta que é, no fim de contas, a  jurisprudência a que o TRP está vinculado. Mas nem isso o TRP pode dizer porque não seria verdade.

A questão que ocorre é, portanto a seguinte:

-Por que é que o TEDH, que julga casos sobre liberdade de expressão (ou outros) divulga a jurisprudência relativa a essa classe de casos, e o TRP, que julga igualmente casos sobre a liberdade de expressão (e outros) não o faz?

A resposta é que o TEDH faz parte de uma tradição democrática de justiça dos países de influência protestante do norte da Europa, ao passo que o TRP faz parte de uma tradição autoritária de justiça dos países de cultura católica do sul da Europa, e, apesar de Portugal viver em democracia há quase meio século, a reforma democrática da justiça continua por fazer.

Aquilo que caracteriza o sistema de justiça de uma tradição política autoritária é o facto de, nessa tradição, a justiça criminal ter duas funções, uma que é a de penalizar os criminosos de delito comum (v.g., homicidas, burlões); a outra função é política e consiste em eliminar os opositores políticos ao regime. Portugal, aliás, foi exímio, utilizando a Inquisição,  a desenvolver esta segunda função

Nesta tradição, os tribunais têm de guardar total discricionariedade para serem o instrumento da arbitrariedade do poder político. É por isso, que o TRP, tal como os outros tribunais superiores do país, não produzem jurisprudência. Seria vinculá-los a regras de actuação definidas por si próprios e que todos passariam a conhecer, retirando-lhes todo o poder discricionário através do qual, agindo como braço do poder executivo, eles calam as vozes dissonantes ao regime e os comportamentos politicamente desviantes.

Foi para acabar com esta actuação dos tribunais, ao serviço do poder político, que os países criadores da tradição democrática exigiram a separação de poderes, na fórmula consagrada por Montesquieu. Esta separação de poderes está longe de se concretizar em Portugal e a existência de um sindicato dos juízes, e outro dos magistrados do MP - um e outro a fazerem reivindicações de toda a espécie ao patrão, às vezes ameaçando o patrão com greves - são os sinais mais visíveis de que o poder judicial continua dependente do poder político.

Os portugueses têm uma má imagem da justiça, e a má imagem é justificada. Não acreditam nela e temem-na pela sua arbitrariedade. Mas isto não é novo e não deve ser motivo para indignação porque Portugal viveu quase sempre sob regimes autoritários que têm este tipo de "justiça" - o maior período sob a monarquia absoluta e mais recentemente sob o regime do Estado Novo.

Aquilo que é motivo para indignação é que, vivendo há quase meio século em democracia, e tendo a possibilidade de tomarem os seus destinos nas suas próprias mãos, os portugueses não tenham ainda reformado democraticamente o seu sistema de justiça.

(Continua)

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