04 março 2020

O Labirinto (II)

(Continuação daqui)


II. O dono da Constituição


A Constituição da República Portuguesa é clara, e no seu artº 32º, nº 1, afirma:

"O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso" (cf. aqui)

O direito ao recurso é um dos direitos humanos fundamentais e está também consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), no artº 2º do Protocolo nº7, anexo à CEDH, sob o título "Direito a um duplo grau de jurisdição" (cf. aqui, p. 46).

Este direito significa que nenhuma condenação de um cidadão por um tribunal se torna efectiva, excepto depois de ser confirmada por um tribunal superior.

Este direito visa proteger os cidadãos contra juízes corruptos, parciais, fanáticos, maliciosos, incompetentes ou enfermando de algum de todos os outros vícios humanos. Na gíria jurídica, uma condenação só se torna efectiva depois de obter a chamada "dupla conforme", a confirmação por um tribunal superior da condenação pelo tribunal inferior.

No caso Rui Rangel vs. Correio da Manhã (cf. aqui), os jornalistas do CM foram absolvidos em primeira instância, mas condenados na Relação de Lisboa. O direito ao recurso permitiu-lhes recorrer para o tribunal superior que é o Supremo Tribunal de Justiça, que os absolveu, e o caso morreu ali.

Tiveram sorte porque a condenação envolvia uma indemnização superior a 15 mil euros (exactamente: 50 mil).

Porque se a indemnização fosse até 15 mil euros, como a dos cabos da GNR ao juiz Neto de Moura (9 mil) ou a minha à Cuatrecasas/Paulo Rangel (exactamente: 15 mil), teriam recebido a resposta:

-Não é possível o recurso para o Supremo porque o Tribunal Constitucional não deixa.

Os cabos da GNR foram condenados pela primeira vez no Tribunal da Relação (de Lisboa) e o mesmo me aconteceu a mim no crime de difamação agravada ao Paulo Rangel (cf. aqui) em que também fui condenado pela primeira vez no Tribunal da Relação (do Porto).

Olhando para o artº 32º da Constituição ou para o artigo correspondente da CEDH, quer os cabos da GNR quer eu próprio, temos direito a recorrer da condenação para o Supremo.

E assim fizemos.

Os recursos para um tribunal superior (Supremo) entram através do tribunal inferior que produziu a condenação (Relação). E os cabos da GNR terão apresentado na Relação de Lisboa o recurso para o Supremo, tal como eu apresentei o meu recurso para o Supremo na Relação do Porto.

Mas a Relação de Lisboa terá dado aos cabos da GNR a mesma resposta que a Relação do Porto me deu a mim, rejeitando liminarmente o recurso e não o fazendo chegar ao Supremo, sob o argumento de que

-O Tribunal Constitucional não deixa.

No caso de um recurso para um tribunal superior ser rejeitado, existe um artigo do Código do Processo Penal (405º) que permite apelar directamente ao presidente do tribunal superior pedindo-lhe que aceite o recurso.

Os cabos da GNR, tal como eu, terão feito então um requerimento ao presidente do Supremo, juiz conselheiro António Joaquim Piçarra, pedindo-lhe que aceite o recurso, invocando o artº 32º da Constituição e o artigo correspondente da CEDH.

A resposta ao meu requerimento veio assinada pela vice-presidente do Supremo, juiz-conselheira Maria dos Prazeres Beleza, e foi a seguinte:

-Não podemos apreciar o recurso porque o Tribunal Constitucional não deixa.

A mesma resposta terão obtido os militares da GNR.

É caso para eu próprio e os militares da GNR nos perguntarmos nesta altura:

-O Tribunal Constitucional não deixa!?… Então, a Constituição diz que temos o direito ao recurso (e a CEDH também) e o Tribunal Constitucional, que foi criado para garantir os direitos constitucionais, não nos deixa exercer um direito constitucional!?…

Pois, é verdade:

-O Tribunal Constitucional não deixa.

O Tribunal Cosntitucional, numa daquelas especificidades da justiça que só devem existir em Portugal, não é meramente o garante da Constituição. Em certas matérias, como a do direito ao recurso, tornou-se o dono da Constituição.

Para um cidadão exercer o direito constitucional ao recurso não basta invocá-lo. Tem de pedir autorização ao Tribunal Constitucional.

Assim fiz eu e assim terão feito os cabos da GNR.

Em Dezembro, o Tribunal Constitucional respondeu-me, através de uma decisão sumária (assinada por um só juiz) dizendo que não me concedia o direito ao recurso.

Em Janeiro, respondeu aos cabos da GNR num acórdão dizendo que lhes concedia o direito ao recurso [é essa a notícia que inspirou esta série de posts (cf. aqui)].

Ainda em Janeiro, eu protestei para o Tribunal Constitucional:

-Então, o direito constitucional ao recurso só não existe para mim!?...

e, invocando a lei, exigi que a decisão de me negarem o direito constitucional ao recurso fosse tomada pela "conferência" (isto é, assinada por três juízes).

Estou à espera da resposta.

Eu vou entrar no quinto ano do meu case-study. O cabos da GNR já vão no oitavo.


(Continua)

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