22 fevereiro 2020

A manipulação da justiça (I)

Quando, no início do ano, formulei votos de que a vida pública no país em 2020 fosse marcada pelo escrutínio da justiça, e dei ao post o sugestivo título de "Corrupção na Justiça" (cf. aqui) - eu estava longe de imaginar que, logo ao fim dos primeiros dois meses do ano, as minhas expectativas estavam largamente excedidas.

Mas Portugal é assim, é um traço da sua cultura e dos portugueses. Podem passar-se anos, às vezes décadas, sem que nada se faça acerca de um assunto carecendo de reforma, e depois, num curto espaço de tempo - às vezes, dias - tudo acontece e tudo se resolve. A cultura portuguesa não é de reformas, é de revoluções.

O caso que esta semana veio a público envolvendo o juiz-desembargador Vaz das Neves, ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa (cf. aqui), tem muitas semelhanças com o meu case-study (cf. aqui). A primeira é que ambos os casos têm no centro processos judiciais cujos autores têm o apelido Rangel. A última é que ambos envolvem a viciação da distribuição dos processos na Relação.

O processo judicial envolvendo o juiz Rui Rangel conta-se em poucas palavras. O Correio da Manhã fez uma notícia de que o juiz Rangel ia ser julgado por causa de um "calote" a uma clínica de estética (cf. aqui).

O juiz sentiu-se ofendido com a palavra calote, sugerindo que ele é um caloteiro, e pôs um processo por difamação aos jornalistas do CM (dois jornalistas mais o director). Esta é a segunda semelhança com o meu case-study. Como já referi noutro lugar, os juízes, os advogados e os políticos são os principais autores dos processos por ofensas (difamação, injúria, calúnia).

A razão é que, sendo insiders do sistema de justiça, podem manipular a justiça em seu favor - como aconteceu neste caso e no meu - e obter condenações, permitindo-lhes enriquecer ilegitimamente, mesmo quando mais tarde o TEDH dá razão ao réu e condena o Estado português por violação do direito à liberdade de expressão.

O juiz exigiu aos jornalistas do CM pela sua honra ofendida uma indemnização de 250 mil euros, nem mais nem menos. Aqui foi bastante mais do que aquilo que a sociedade de advogados Cuatrecasas e o seu director na altura, Paulo Rangel me pediam a mim pela sua honra ofendida, 100 mil euros.

Como se sabe, à boca do julgamento, o Papá Encarnação, em representação dos ofendidos, estava disposto a vender a honra dos seus clientes ao preço da chuva, 5 mil euros, mas eu rejeitei considerando que a honra deles não vale sequer um pingo  da dita (cf. aqui).

Pelo contrário, considero-os uma associação conjuntural de criminosos que, em cumplicidade com o Ministério Público e também alguns juízes, manipulam o sistema de justiça a seu favor para perseguir cidadãos e enriquecerem ilicitamente.

Os jornalistas do CM foram absolvidos em primeira instância - e esta é outra semelhança com o meu case-study, eu também fui absolvido do crime de difamação ao Paulo Rangel em primeira instância.

O juiz Rangel recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) onde ele próprio era juiz. E é aqui que surge o problema. E mais uma semelhança com o meu case-study, o eurodeputado Rangel também recorreu para o Tribunal da Relação, embora do Porto (TRP).

A distribuição dos processos num tribunal é suposta ser aleatória para garantir a imparcialidade dos juízes. Porém, o juiz Rangel moveu influências junto do presidente do TRL, juiz Vaz das Neves, para que este entregasse o processo a juízes amigos que decidissem a seu favor.

E assim aconteceu. O acórdão da Relação de Lisboa inverteu a decisão de primeira instância e condenou os jornalistas do CM a pagarem uma indemnização de 50 mil euros ao juiz Rangel. Esta é mais uma semelhança com o meu case-study. O Tribunal da Relação do Porto também inverteu a decisão de primeira instância e condenou-me a pagar uma indemnização de 10 mil euros ao eurodeputado Rangel.

A manipulação do sistema de justiça em favor de uma das partes no processo, a viciação das regras de distribuição dos processos, a violação do atributo mais importante da justiça - a imparcialidade - estavam consumadas. É a corrupção da justiça.

(Mais tarde os jornalistas do CM recorreram para o Supremo que os absolveu definitivamente num acórdão arrasador para o juiz Rui Rangel, cf. aqui)


(Continua)

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