I. Corrupção na Justiça
O meu principal voto para 2020 relativo à vida pública portuguesa é o de que se intensifique uma tendência que ainda é fraca na opinião pública do país mas que, não obstante, tem vindo a aumentar ao longo dos últimos anos.
Refiro-me à tendência para submeter a escrutínio público o sistema de justiça.
Fala-se muito em corrupção em Portugal e ainda este mês o assunto voltou para as páginas dos jornais com a passagem, no dia 9, do Dia Internacional contra a Corrupção.
Para os estudiosos do fenómeno da corrupção há muito que é consensual que a corrupção tende a ser mais frequente no sector público do que no sector privado. A razão é que no sector privado o patrão está geralmente por perto para zelar pelo seu património e pelos seus interesses, algo que não acontece no sector público.
Dentro do sector público, associa-se a corrupção mais ao poder executivo do que a qualquer outro dos dois poderes do Estado, o legislativo e o judicial.
Eu estou hoje convencido, porém, que o principal foco de corrupção em Portugal está no poder judicial.
Esta afirmação exige duas qualificações para não ser erroneamente interpretada.
A primeira respeita à sua racionalidade. Ao contrário dos poderes executivo e legislativo que, desde que Portugal se tornou democrático, têm estado sujeitos a um intenso escrutínio público, o poder judicial tem andado num regime de rédea livre, entregue a si próprio, sem escrutínio popular, e deixado nas mãos das três corporações de juristas que dele se apropriaram e o fizeram seu - magistrados do Ministério Público e advogados, em primeiro lugar, mas os juízes também não estão isentos.
São raros os comentadores públicos que ousam criticar o sistema de justiça, ou porque muitos deles são juristas e beneficiam, eles próprios, do sistema, ou porque fazem parte de redes de interesses (v.g., partidários) que têm medo de tocar no sistema de justiça (porque o sistema é vingativo e pode estragar-lhes a carreira ou mesmo a vida). É justo salientar a este propósito, e como muito honrosa excepção, o comentador Miguel Sousa Tavares, frequentemente referido neste blogue.
A segunda qualificação respeita à natureza da corrupção. Eu não me refiro tanto a corrupção pessoal, envolvendo magistrados do MP, advogados ou juízes, embora esta também exista, mas a corrupção sistémica. Uma boa parte das regras do nosso sistema de justiça, por falta de escrutínio público, são de tal modo antiquadas ou injustas que, à luz duma concepção democrática de justiça, são regras corruptas e induzem comportamentos corruptos por parte dos agentes de justiça.
Exemplifico esta distinção entre corrupção pessoal e corrupção sistémica com recurso ao futebol. Se as regras do futebol passarem a permitir dar caneladas no adversário e se, num jogo, o ponta de lança, depois de dar uma canelada no defesa adversário, marcar golo e o árbitro validar o golo, a corrupção não está no árbitro. Está na regra do jogo que permite dar caneladas ao adversário.
Para acabar com esta corrupção sistémica no sistema de justiça não é preciso inventar muito. Basta imitar os sistemas de justiça dos países que têm uma longa tradição democrática, que não é o caso de Portugal. E pode-se começar de forma modesta tomando como referencial o artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, sob o título "Direito a um processo equitativo", diz assim, no seu primeiro parágrafo:
"Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela (…)"
Quando o sistema de justiça português cumprir as regras enumeradas neste artigo - equitativo, imparcial, independente, público, célere,.. - ter-se-á dado um passo enorme para acabar com a corrupção na justiça e nos comportamentos corruptos que ela engendra e que se disseminam por toda a sociedade.
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