03 dezembro 2019

medo e ignorância

Num post anterior (cf. aqui), cujo assunto retomo agora, afirmei que o preambulo do artº 6º da CEDH é talvez a descrição mais sucinta que conheço do que é um processo judicial justo em regime democrático:

"Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela (…)" (cf. aqui).

O processo judicial democrático é então um processo a que qualquer um tem o direito de recorrer (o chamado direito de acesso a um tribunal), que é também equitativo (dá igual peso ou importância a ambas as partes, acusação e defesa), público (para evitar a justiça secreta), que decorre num prazo razoável (i.e, que não se eterniza), num tribunal independente (i.e., em que os juízes não devem obediência a ninguém, excepto à lei) e imparcial (i.e., que não favorece qualquer das partes, acusação ou defesa), estabelecido pela lei (i.e., que não é estabelecido ad hoc)…

Embora as notícias de condenação de Portugal pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sejam quase sempre referentes ao artº 10º da CEDH (liberdade de expressão), a verdade é que o maior número dessas condenações ocorre, não por causa do artigo 10º, mas por violação do artigo 6º. E a razão para isto é a de que Portugal não possui uma tradição de justiça democrática.

Neste post pretendo referir-me a essa tradição antidemocrática da justiça portuguesa, que 45 anos de democracia não conseguiram reformar, em termos dos atributos que o artigo 6º da CEDH considera serem os atributos de uma justiça democrática.

Porquê essa tradição antidemocrática?

Porque na maior parte da nossa história vivemos sob regimes políticos antidemocráticos ou autoritários e o nosso sistema de justiça vive ainda predominantemente desses tempos e ainda não se reformou. Entre 1143 e 1820 vivemos sob um regime de monarquia absoluta; entre 1820 e 1926 os períodos de democracia alternaram com períodos de suspensão das liberdades democráticas; e de 1926 até 1974 voltámos a viver sob um regime autoritário. O nosso sistema de justiça é o reflexo da nossa história e está ainda por reformar democraticamente.

Por exemplo, o rei absoluto, ao passear no seu coche, atropela um artesão, e o caso vai parar a tribunal. Qual é o juiz que vai fazer prova de equidade no julgamento (dando igual importância ao rei absoluto e ao artesão), ou de imparcialidade (não favorecendo qualquer das partes) ou mesmo de independência, se o lugar do juiz, e mesmo a sua vida, dependem do rei absoluto?

Nenhum.

O nosso sistema de justiça é ainda o espelho da tradição política autoritária que constitui a esmagadora maioria da nossa história. E nos últimos 45 anos, que têm sido de democracia, nunca nenhum político ou partido político se atreveu a fazer a reforma democrática da justiça.

Dizem que não dá votos. Não estou nada certo porque nas sondagens de opinião é a justiça que os portugueses põem no primeiro lugar das suas preocupações na vida pública.

É por medo e ignorância.

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