O Juiz-Pistoleiro
(Novela)
Cap. 20. Juiz por uma manhã
Somente a sua colega, a magistrada Maria da Glória, conhecia a razão do nervosismo de Toni Guimarães nessa manhã no tribunal de Littlebushes.
Eram oito e cinco da manhã, ele tinha acabado de se levantar, estava ainda a fazer a barba, quando ela lhe telefonou de Lisboa. Estava no Centro de Estudos Judiciários, tinham acabado de sair as notas dos exames para juiz realizados na semana anterior.
-Toni … chumbaste outra vez…
Fez-se um silêncio, e ele perguntou desalentado:
-Em que lugar fiquei?...
-Oitenta e sete…,
respondeu ela.
Eram oitenta e oito candidatos e só os dez primeiros tinham sido admitidos. A própria Maria da Glória, muito mais estudiosa do que o Toni, e menos dada a farras, não tinha ido além da posição quarenta e nove.
Parecia uma sina dos procuradores do Ministério Público, chumbarem no exame para juiz. O magistrado Guimarães chumbava pela sétima vez consecutiva ao longo dos últimos dez anos.
O exame nem tinha sido particularmente difícil. Era uma case-study que dizia assim:
"Um cidadão ia a atravessar uma rua na passadeira. Aparece um carro e dá-lhe uma panada que o manda para o hospital com uma perna partida.
Responda às seguintes questões:
a) Houve crime nesta situação?
b) Em caso afirmativo,
b1) Quem é o criminoso?
b2) De que crime se trata?
b3) Que pena prevê o Código Penal para este crime?"
O magistrado Toni Guimarães respondeu assim:
a) Ouve crime sim sinhore.
b1) O criminoso é o transiunte.
b2) O crime é omicídio cualificado.
b3) a pena é quinse anos de prisão prepétoa.
Teve dois valores, por caridade, na escala de zero a vinte e a própria Maria da Glória não foi além de seis e meio.
Esta frustração de não ser capaz de chegar a juiz era enorme, no magistrado Guimarães e em noventa e cinco por cento dos seus colegas.
Porém, o seu sindicato tinha conseguido muitos avanços e várias compensações. Os procuradores do Ministério Público não eram juízes, mas o povo confundia-os com os juízes, por causa das conquistas do sindicato.
O sindicato tinha conseguido que os políticos aprovassem uma lei que lhes outorgava o título de magistrados, um título até então reservado aos juízes.
Era grande o prazer que o magistrado Guimarães sentia diariamente quando chegava ao DIAP às onze de manhã, e as empregadas da limpeza se cruzavam com ele à saída e lhe diziam:
-Muito bom dia senhor magistrado… os meninos estão bem…?
E depois, quando regressava do almoço às quatro da tarde, e os seguranças se curvavam perante ele e lhe diziam:
-Boa tarde senhor magistrado… como está?...
Os políticos aprovavam tudo aquilo que os procuradores do Ministério Público lhes exigiam com medo que eles lhes inventassem uns crimes e os pusessem na prisão.
O sindicato também tinha conseguido fazer aprovar uma lei que lhes dava em tribunal um lugar na tribuna, sentados à direita do juiz, de maneira que as pessoas frequentemente pensavam que eles também eram juízes.
O sindicato tinha conseguido também uma carreira retributiva paralela à dos juízes e os procuradores do Ministério Público gozavam da mesma imunidade de que gozavam os juízes, e tinham conseguido tudo isto sempre chantageando os políticos.
Ultimamente - sempre com medo que os magistrados do Ministério Público lhes inventassem um crime que os levasse à prisão -, os políticos tinham mesmo aprovado que, à semelhança dos juízes, os magistrados do Ministério Público pudessem ganhar mais do que o próprio primeiro-ministro.
Porém, apesar de toda esta aparência, quando à noite ficavam sozinhos a magicar sobre a sua existência, eles sentiam aquilo que eram, uns magistrados de vão-de-escada, uns politiqueiros de trazer por casa, uns investigadores criminais de sofá, às vezes, uma verdadeira associação de malfeitores, uns pobres diabos.
Por isso, naquela manhã no tribunal da Littlebushes em que, pela primeira vez, se sentou na cadeira do juiz, o magistrado Toni Guimarães teve o prazer da sua vida. E pensou:
-Antes juiz por uma manhã do que procurador do Ministério Público toda a vida…
(Continua aqui)
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