O liberalismo, que é inspirado pelo calvinismo, tem sido frequentemente acusado pelos seus inimigos - os principais são o catolicismo e o socialismo - de pôr um ênfase excessivo no dinheiro, em detrimento de outros valores da vida.
Trata-se de uma acusação falsa que procurarei ilustrar contrapondo o liberalismo ao catolicismo, acerca de um bem que é de um enorme valor, senão mesmo o bem mais valioso da vida, aos olhos de qualquer homem cristão - a salvação.
Para o efeito, retomo a transcrição que fiz no post em baixo de um trecho cujo autor é o presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, uma instituição católica destinada a promover as ideias sociais e políticas da Igreja Católica.
Nesse trecho, em que o juiz Vaz Patto é interpelado por um pedinte na rua, ele considera que a esmola que lhe dá não vai tirar o pedinte da pobreza e que, na melhor das hipóteses, lhe serve apenas para satisfazer uma necessidade temporária e fugaz, como matar a fome. Não obstante, ele dá a esmola ao pedinte e a razão principal porque o faz é para agradar a Deus.
À luz da teologia católica, dando a esmola ao pedinte, aquilo que o juiz Vaz Patto está a fazer é a comprar a salvação.
Estamos aqui no centro de uma questão teológica que dividiu severamente católicos e protestantes na altura da Reforma, e que ainda hoje os divide, que é a chamada doutrina da justificação.
A doutrina da justificação ocupa-se de saber o que é que justifica um homem perante Deus, ou, em termos mais prosaicos, o que é que leva Deus a perdoar (ou não) os pecados ao homem, abrindo-lhe as portas da salvação e a vida eterna.
Para o calvinismo é somente a fé (o princípio protestante "Sola Fide"). É somente pela fé em Deus, a crença de que Cristo veio ao mundo para redimir os pecados do homem, que o homem será perdoado por Deus, obtendo a salvação e conquistando a vida eterna.
Na concepção calvinista, Deus é um juiz exterior ao homem e perante o qual o homem se apresenta como réu. Não há nada que o possa absolver no Juízo Final excepto uma firme fé em Cristo.
É diferente a teologia católica, que é mais antiga, e à qual a teologia calvinista se veio opor. Na teologia católica, o homem justifica-se perante Deus - isto é, obtém o perdão dos pecados -, também pela fé. Mas não somente pela fé. Também pelas obras (de caridade, de que a mais vulgar é precisamente a de dar esmola aos pobres).
Para o calvinismo, se um homem levar uma vida de pecado e não tiver fé em Cristo, será seguramente condenado por Deus. Só a fé o pode salvar. Para o catolicismo, as coisas são mais flexíveis. Um homem pode levar uma vida de pecado e não ter fé nenhuma em Cristo, mas desde que dê umas esmolas aos pobres ou uma contribuição ocasional para fazer a igreja da aldeia, ele será salvo. No catolicismo, a salvação obtém-se seja pela fé, seja pelas obras, seja pelas duas vias ao mesmo tempo.
Segue-se que, no catolicismo, até a salvação - a vida eterna - se compra a dinheiro. No calvinismo, pelo contrário, essa via está fechada. Só a fé dá acesso à vida eterna.
No catolicismo, o homem, que é o réu, apresenta-se perante Deus, que é o Juiz, com capacidade para influenciar o seu próprio julgamento através da prática de obras de caridade, de que a mais vulgar - não é excessivo insistir - é a esmola aos pobres. Na teologia católica, é possível "comprar" a justiça divina, algo que está inteiramente vedado na teologia protestante.
Que a teologia católica - segundo a qual, a justiça divina pode ser influenciada e, no limite, comprada pelo réu - seja subscrita pelo homem vulgar, que nunca se deu ao trabalho de examinar as consequências que daqui resultam para a vida em sociedade, é perfeitamente compreensível.
Mas que ela seja aberta e acriticamente exposta por um juiz-desembargador é bastante mais problemático. Porque, se no mundo católico, é possível comprar a justiça divina, fica-se a pensar o que acontecerá nesse mundo com a justiça terrena. Esta é certamente uma questão sobre a qual nenhum juiz gostará de se pronunciar.
Na teologia católica, os pobres são o instrumento que os ricos e os bem na vida têm ao seu dispor para pagar os seus pecados e para comprarem o bilhete de acesso à vida eterna. Os pobres são uma espécie de prostitutas dos ricos.
E, na realidade, ali estavam eles, à espera do juiz Vaz Patto, a oferecerem-se na rua, à saída de um evento social destinado a erradicar a pobreza. De forma algo relutante, o juiz Vaz Patto aceitou a oferta e pagou para sua gratificação pessoal.
Estava paga mais uma prestação do preço da salvação.
Foi isto que o calvinismo (e, neste ponto, também o luteranismo) veio acabar. Quem quiser justificar-se perante Deus justifica-se sozinho e não tem nada a pagar. Não precisa de coitadinhos, sejam eles pobres ou prostitutas ou as duas coisas ao mesmo tempo.
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